Marcela
era uma mulher de fibra. A vida não tinha sido generosa com ela e por isso tudo
o que tinha era fruto de trabalho e muito suor.
Nascida
em uma família humilde do interior de São Paulo, teve que trabalhar desde cedo para
ajudar os pais. Acordava cedo e ia dormir tarde. Seu Raimundo, pai de Marcela,
não gostava de ver sua única filha naquela situação, porém não via outra
solução. Sua mulher estava muito doente e não podia acompanha-lo no trabalho.
Crescendo
nessa atmosfera, Marcela se tornou uma mulher responsável e dedicada a família.
Não tinha tempo ruim para ela. Era, como se diz no popular, pau para toda obra.
E não pensem que ela era uma pessoa triste por causa disso. Não senhor! Tinha
orgulho dos seus pais e do lugar onde nasceu e cresceu, pois sabia que eles haviam
feito tudo que podiam para dar a ela uma vida, senão cheia de glamour, digna.
Seu
Raimundo não era uma pessoa muito religiosa. Dava para contar nos dedos da mão
esquerda quantas vezes pisou numa igreja. Já dona Raimunda, [isso mesmo, você
não leu errado], essa era crente, e das fervorosas. Tudo acontecia graças a Deus.
Marcela
cresceu ouvindo aquela expressão e junto com a mãe, ia todos os domingos para a
igreja, fizesse sol ou chuva (mais sol do que chuva, pois moravam num lugar que
só perdia em quentura para o próprio inferno).
Todas
os domingos elas andavam 2 quilômetros para chegar até a igreja. Levantavam bem
cedo, com o galo cantando as primeiras notas do seu rito matinal. Tomavam café,
quando havia, e juntas iam cantando hinos de adoração. No meio do caminho se
juntavam a dona Severina e as três, graças
a Deus, iam felizes para a Casa do Senhor.
Marcela
cresceu uma mulher de fibra, como descrito no início, e saiu do interior de São
Paulo para morar na capital. Lá conheceu Paulo. Apesar da clara afinidade que
os dois tinham, demorou até ele tomar coragem e convida-la a tomar um sorvete. Demorou
mais ainda para o primeiro beijo. Já para o desabrochar da flor, se é que vocês
me entendem, não demorou tanto. Porém, só aconteceu depois que os dois estavam devidamente
casados, pois Marcela aprendeu na igreja que só podia conhecer Paulo, na sua
total intimidade, depois do casamento.
Não
com menos lutas, os dois conseguiram se estabilizar e resolveram buscar os pais
de Marcela. Ela queria dar aos dois, nos anos finais de suas vidas, um momento
de mais sossego e tranquilidade. Eles mereciam depois de tudo que passaram. E Paulo,
mais do que imediatamente, aceitou a vinda deles, pois tinha-os em alta estima.
E
assim aconteceu. Seu Raimundo não precisava mais madrugar para ir a até a
carvoaria e dona Raimunda não precisava mais se deslocar até o ribeiro mais
próximo (1,5 km de distância), equilibrando quilos de roupas na cabeça. Seu
Raimundo agora passava o dia na praça, conversando com homens da sua idade,
divagando sobre o passado e futuro (uma eleição para presidente estava próxima)
e dona Raimunda estava encantada com um aparelho chamado TV. Passava horas
vendo o programa de uma mulher que cozinhava muito bem, uma tal de Palmirinha.
Os
anos passaram e Marcela e Paulo tiveram 3 filhos. Eles eram as joias da casa. Toda
a atenção era para eles. Seu Raimundo não parava de adula-los. Levava-os para
tudo que era canto: parques, zoológicos, cinema. Quando possível, ia com eles
para sua cidade natal, no interior de São Paulo. Já dona Raimunda não parava de
engorda-los. Sim, depois de assistir aos programas da Palmirinha, tomou gosto
pela culinária, o que foi um achado delicioso para a família, principalmente
para as crianças, pois dona Raimunda se especializou em fazer bolos e doces.
Certa
noite Marcela, depois de checar as crianças, estava indo para o seu quarto
quando ouviu um barulho vindo do quarto. Abriu a porta e viu sua mãe com a mão
no peito, gemendo de dor. Seu pai, que estava no banheiro, viu o que estava acontecendo
e saiu correndo em direção da sua Raimunda. Ele colocou a cabeça dela em seus
braços e em vão tentava falar com ela, perguntando o que estava acontecendo. Ela
não podia falar. A dor era grande. Paulo e as crianças, acordados pela agitação,
se juntaram a Paulo e Marcela e ficaram em volta de dona Raimunda. Todos apreensivos
com a situação. De repente, a dor parecia ter passado. Dona Raimunda tirou a
mão direita do peito e com ela começou a acariciar o rosto do seu Raimundo. Ele,
homem cabra macho, nascido no interior do estado, filho de cearenses e lapidado
pelas dificuldades da vida, começou a chorar como criança. Dona Raimunda então
olhou bem para ele, piscou duas vezes de forma a acalma-lo e disse, “Está tudo
bem.” E com essas últimas palavras, o sopro da vida a deixou.
Alguns
meses se passaram. Marcela estava mexendo nas coisas da sua mãe, revendo fotos
que a remetiam a época da infância sofrida do interior. Em uma delas, sua mãe
equilibrava uma trouxa de roupas. Ela teve uma mistura de riso com choro. Aquela
foto era a expressão da força da sua mãe.
Enquanto
remexia nas coisas, encontrou alguns papéis. Limpou as lágrimas para poder enxergar
melhor. Não conhecia aquela letra. Não era uma letra bonita, aliás, era a letra
de alguém semialfabetizado. Talvez algo que o seu filho mais velho tenha
escrito. Leu com mais atenção. Foi quando percebeu de quem era.
Toda
empolgada, foi até a sala e reuniu todos: Paulo, seu Raimundo e as crianças. Todos
estavam muito curiosos. Ela então disse que iria ler uma carta. Todos ficaram
em silêncio. Ela limpou a garganta, algo
típico de quem vai ler algo importante, e começou a leitura.
*Nota
do autor: erros ortográficos e gramaticais foram deixados de fora.
Querida
filha,
É
com muita alegria no coração que escrevo esta humilde carta. Peço que ao lê-la,
seja em voz alta e para toda a família.
Vocês
devem estar se perguntando: ela sabe escrever??? Sim, eu sei. Não tão bem
quanto você Marcela, ou o Paulo, ou como as crianças um dia irão escrever. Vocês
encontrarão muitos erros nessas linhas, porém saibam que são palavras sinceras.
Bem,
o que me motivou a escrever essa carta são as dores que tenho sentido
ultimamente. Sei que são sinais de que o meu tempo aqui na Terra está acabando.
Por isso quero deixar registrado o que penso.
Passei
a noite buscando palavras para descrever o que sinto e cheguei a três palavras
que fazem bem esse papel. Palavras que uso desde minha mocidade e que, pelo
visto, irei usar também no final da minha velhice.
GRAÇAS A DEUS
Graças a Deus eu
nasci, cresci, vivi.
Passei
por momentos difíceis? Claro que sim. Porém não me arrependo e nem trocaria
eles por nada, pois com eles aprendi muito. Mas há momentos bons também. Nem
tudo foram espinhos. Tiveram flores também, muitas.
Graças a Deus
conheci o seu pai.
Pensa
num homem bruto. Mas é bruto por fora somente. Por dentro é um excelente marido
e homem. Lá no interior, fez tudo para nos dar o melhor. Muitas vezes passou fome
para que eu e você pudéssemos comer. Meu Deus, como eu amo esse homem. E sabe,
das coisas que ele me deu, a mais preciosa é você Marcela.
Graças a Deus você
conheceu o Paulo.
Gosto
muito dele, viu? Ele é muito carinhoso com você e com as crianças. Você não
poderia ter conhecido alguém melhor. O único senão é esse bigode dele. Ele podia
tirar, né?
Graças a Deus eu
ganhei mais três crianças, os meus netos.
Ah,
que delícia de crianças. Amo cada uma delas intensamente. Desejo tudo do melhor
para elas. Elas apareceram como um sopro novo nas nossas vidas. E não há nada
que eu mais goste do que cozinhar para eles. Vê-los todos lambuzados, com a boca
melada de chocolate é um prazer só.
Graças a Deus você
nasceu.
Lembra
quando disse que passamos por momentos difíceis? Quando fiquei grávida de você,
seu pai ficou pistola. Ele achava que não tínhamos como ter um filho. E ele não
estava errado. Era uma época complicada. Eu, porém, fiquei feliz, pois seria
mãe. Quantas mulheres querem ser e não conseguem. Então você nasceu e fez uma baita
diferença na nossa vida. Nos deu força para continuar; nos tirou do interior e
nos trouxe para a cidade grande; nos fez parar de trabalhar; nos trata com todo
carinho e amor; nos deu a oportunidade de, no fim da vida, curtir um pouco de sossego
e conforto; nos deu três netos lindos; me deu a chance de estudar (eu não falei
pra vocês, pois estava com vergonha, mas eu entrei no programa da prefeitura
que ensina idosos a ler e escrever); entre outras milhares de coisas. Minha amada
filha, você não tem ideia de quão orgulhosa eu estou de você, vê-la se tornar a
mulher que é.
Bem,
minha filha. E meu filho Paulo. (Pra mim você é filho e não genro). E meus
netos. E meu Raimundo. Posso ir agora sem nenhum arrependimento ou tristeza no
coração, pois tive o privilégio de conhecer e conviver com todos vocês.
Um
beijo no coração de cada um de vocês.
E
lembrem-se, tudo isso graças a Deus.
Raimunda,
esposa
mãe
avó
Marcela
terminou de ler a carta. Olhou em volta e viu que todos choravam, menos as duas
crianças menores. Elas ainda não entendiam o que tinha acabado de acontecer.
Marcela entendia claramente, pois nutria por eles o mesmo sentimento que sua
mãe.
Ela
então reuniu todos a sua volta e, sem falar nada, apenas com um gesto, reuniu
todos no centro da sala e se abraçaram. Um longo, demorado, abraço.
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Graças
a Deus mais um ano se foi.
Graças
a Deus mais um ano começa.
Desejo a todos um excelente 2018.
DEUS no controle
HAPPY 2018