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sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

20 de Novembro



1.

- Bom dia. Tudo bem?

- Bom dia. No que posso ajudá-lo?

- Meu nome é Gabriel e eu trabalho para o governo.

- Vixi! Valha-me Deus. Olha moço, eu não paguei a conta de luz porque esse mês as coisas apertaram por aqui, por causa da Covid, mas prometo que...

- Calma, minha senhora. Eu não trabalho para a Enel. Aliás, a Enel, Ente nazionale per l'energia elettrica, que em português significa Agência Nacional de Eletricidade, é uma empresa privada italiana com sede em Roma que comprou 70% das ações da Eletropaulo em junho de 2018, se tornando assim a líder de distribuição de energia elétrica no Brasil.

- Wow. Como você é inteligente.

- Obrigado, minha senhora. Na verdade, eu sou uma pessoa curiosa.

- Eu também, rapaz.

- Sério?

- Sim. Por exemplo, eu sou muito curiosa em saber o que acontece na vida dos outros. Kkkkkk... adoro uma fofoquinha. 

- Ah, minha senhora. Esse tipo de ‘curiosidade’ eu não tenho.

- Seu bobo, não sabe o que está perdendo.

- Aí é que a senhora se engana. Sei muito o que estou perdendo.

- Pois bem, moço inteligente.

- Mais uma vez, obrigado pelo inteligente.

- Já que você, graças a Deus, não veio cortar minha luz e assim eu posso assistir quem da Fazenda será eliminado hoje, e vou confessar que votei para a Jojo Todynho continuar, o que você quer aqui?

- Eu sou do departamento responsável pelo Censo 2020.

- Celso? Mas que Celso? Eu não conheço nenhum Celso.

- Não, minha senhora. Não é Celso. É Censo.

- O que é isso?

- O censo ou recenseamento demográfico é um estudo estatístico referente a uma população que possibilita o recolhimento de várias informações, tais como o número de homens, mulheres, crianças e idosos, onde e como vivem as pessoas. Esse estudo é realizado, normalmente, de dez em dez anos, na maioria dos países. Segundo a definição da ONU, "um recenseamento de população pode ser definido como o conjunto das operações que consistem em recolher, agrupar e publicar dados demográficos, econômicos e sociais relativos a um momento determinado ou em certos períodos, a todos os habitantes de um país ou território".

- Nossa, moço. Você é bom mesmo, hein?

- Obrigado. A senhora teria uns minutos para responder algumas perguntas?

- Claro. Quer entrar? Assim eu passo um cafezinho enquanto você faz as perguntas.

- Seria ótimo. Com licença.

 

Dentro da casa...

 

- Podemos começar?

- Claro.

- Vamos começar pelo começo. O nome da senhora?

- Mirtes.

- Nome completo, por favor.

- Mirtes Araújo Pereira da Silva Filho.

- Filho? Mas a senhora é mulher.

- Eu sei. Diga isso para o meu pai e para o rapaz do cartório.

- A senhora é casada?

- Por quê? Gostou do que viu, né?

- Olha, não posso dizer que não gostei. A senhora é uma mulher muito bonita. Mas a pergunta tem a ver com o questionário. A senhora é casada?

- Juntada conta como casada?

- Sim.

- Então eu sou casada.

- Vocês têm filhos?

- Sim. Temos 3 filhos.

- Ok. Tem animais de estimação?

- Você não viu os meus cachorrinhos quando passou pelo quintal?

- Vi sim. São adoráveis. São 3 no total?

- Não, são cinco. Mas dois estão na casa da minha mãe.

- Quantos anos a senhora, seu marido e filhos têm?

- Pergunta um pouco indelicada, não acha?

- Me perdoe, minha senhora. Preciso perguntar.

- Eu tenho 45, meu marido tem 50, e meus filhos têm, respectivamente, 20, 15 e 10.

- Ok. E são todos brancos como a senhora?

 

Silêncio...

 

- Como é que é?

- Seu marido e filhos, eles são brancos como a senhora?

- Brancos???? Como a senhora???? Olha pra mim, rapaz? Você acha que essa preta linda aqui é branca?

- Minha senhora, com todo o respeito do mundo, a senhora não é preta. Aliás, não podemos usar essa palavra, mas sim afrodescendentes, ou afro-brasileiros, ou brasileiros negros.

- Mas por que afro?

- Tem a ver com os africanos.

- Que mané africanos. Eu sou filha de baianos mesmo. Sou baiana-brasileira. E meu marido é cearense-brasileiro, e meus filhos são sampa-brasileiros. E NÓS SOMOS PRETOS. Que mané negros.

- Minha senhora, em primeiro lugar parabéns pelo nós somos. Fui em várias casas e as pessoas dizem nóis é...

- Obrigada.

- E em segundo lugar, eu não tenho aqui no meu formulário o termo preto, e sim negro.

- Esse formulário está errado.

- E em terceiro lugar... a senhora é branca.

- Moleque, você é educado, inteligente e até bonitinho, mas se me chamar de branca novamente...

- Qual o problema de chamar a senhora de branca?

- EU NÃO SOU BRANCA. EU NÃO... Meu Deus, a água do café.

 

Depois do café pronto...

 

- Eae. Como está o pretinho?

- Pretinho????

- Ééééé. O café? Como está?

- Uma delícia. Obrigado.

- Então rapaz inteligente, o café é preto ou negro?

- O café é preto, porque a cor dele é preta.

- Então, se o café é preto porque a cor dele é preta, logo eu sou preta porque minha cor é preta.

- MINHA SENHORA, A SENHORA É BRANCA.

- EU SOU PRETA.

- A SENHORA É BRANCA.

- QUER SABER, SAIA DA MINHA CASA.

- EU VOU SAIR. E VOU COLOCAR AQUI QUE A SENHORA E TODA A SUA FAMÍLIA É BRANCA.

- Quem você chamou de branca aí?

 

O rapaz olha para trás. É o marido de Mirtes. Um negão 4x4. Ou seria um preto 4x4? Ou um afrodescendente 4x4? Ou um afro-brasileiro 4x4?

 

- Você chamou minha mulher do que?

- Bran.... bran... branca.

- Retire o que você disse. Agora.

- Mas...

- Sem mas. Retire o que você disse sobre minha pretinha. Agora.

- Não posso.

- Por que não?

- Porque ela é branca. Só por isso. Não posso ir contra o que estou vendo.

 

Essa conversa demorou boas 3 horas e Gabriel, o rapaz do censo, saiu da casa sem saber qual era a cor da mulher. Ele deixou um ? no espaço da cor.

Dali foi direto para casa, e lá se afundou em livros ao mesmo tempo que consultava a Internet para saber se a pessoa podia ser chamada de negra ou preta.

Ele mesmo começou a ter dúvidas sobre sua própria cor. Sua mãe dizia que ele era moreno, mas... moreno é cor? E pardo, é cor?

Quanto mais lia, quanto mais pesquisava, menos sabia, menos se convencia.

Decidiu que não iria sair dali sem uma reposta.

Dormia no quarto.

Comia no quarto.

Vivia no quarto.

No início sua mãe levava comida e bebida para ele. Mas depois que ela veio a falecer, começou a pedir comida pelo ifood.

Como era funcionário público, manteve o emprego e passou a trabalhar de casa (home office).

Diz a lenda que Gabriel nunca saiu do seu quarto.

Ficou enfiado ali por dias, meses, anos, décadas.

Escreveu teses, teorias, histórias fictícias, bem como histórias reais.

Mas nunca, nunca mesmo, chegou perto de responder à pergunta que o perseguia desde o dia que conheceu dona Mirtes.

Preta ou negra?

E com essa dúvida não respondida, veio a falecer.

E fez questão de que colocassem na sua lápide:

“Aqui jaz um homem muito inteligente, mas não o suficiente para diferenciar o preto do negro do branco”.


 


 

2. 

- Oi, amor. Voltei.

- Eba. Trouxe o meu danone.

- Vixi. Esqueci.

- Tá de sacanagem comigo, né?

- Claro que estou. Toma aqui o seu danone.

- Beleza, amor. Sabia que podia contar com você.

- E como você se comportou muito bem na casa da minha mãe, sendo educado com ela, ouvindo suas histórias...

- Como assim me comportei bem? Eu sempre me comporto bem. Eu adoro sua mãe.

- Menos, amor. Sei que você não suporta ficar perto dela.

- É mesmo? Tá bem na cara assim?

- Você não consegue disfarçar, mas... como estava falando antes de ser interrompida... Você mandou muito bem, logo merece uma recompensa.

- Recompensa? Hmmm...

- Quieta o facho. Não é desse tipo de recompensa que estou falando.

- Aaahhhh....

- Como recompensa, eu comprei um pacote de BIS pra você, pois sei que você adora.

- BIS???? Uhuuuuu... comprou o preto, né?

- Como?

- Você comprou o preto, o BIS preto?

 

Silêncio.

 

- Xiiiiii... que cara é essa? Falei alguma coisa errada?

- Sim, disse... BIS... BIS... BIS...

- Fala, muié. Desembucha.

- PRETO. VOCÊ DISSE BIS PRETO.

- Calma. Não precisa gritar.

- Desculpa.

- Mas, voltando ao BIS, está errado? Ele não é preto?

- Sim, mas não falamos mais preto e sim escuro.

- KKKKKKK.... KKKKKKK...

- Albertoooo... para de rir.

- Desculpa, amor. Mas.... KKKKKK... BIS escuro. Que merda é essa?

- Não podemos mais falar preto. É racismo. Temos que dizer escuro.

- Tá maluca???

- Não. A própria empresa que, por medo de ser processada, mudou o nome de BIS preto para BIS escuro.

- Mas, e o BIS branco. Mudou também?

- Sim, agora é BIS claro.

- KKKKKK... BIS CLARO... KKKKKKK...

- Albertooooo...

- Desculpa, amor. Eu não aguento. Por isso eu vou repetir a pergunta, que é muito profunda e que fiz a alguns minutos.

- Tá. que pergunta?

- QUE MERDA É ESSA?

- São os novos tempos. Ah, e quando você quiser um mix, você irá pedir um BIS escuro e claro.

- Eu não acredito no que estou ouvindo.

- Pois é, meu amor.

-AAAAAAHHHHHH!!!!

- O que foi?

- Eles têm BIS lá que se chama BLACK. BIS BLACK. E aí? Hein? Hein?

- Esse não tem problema. É em inglês.

- Aff... Quer saber, esse papo deu fome. Passa o meu preti... digo, escurinho aí.

- Escurinho, não. Escuro. Falar no diminutivo passa uma ideia pejorativa.

- Quem disse? A empresa? Não vai me dizer que...

- Não, essa ideia é minha.

- Aaahhh, amor. Vai te cata. Passa o meu pretinho aqui. E com danone fica muito mais gostoso.

 

 

 

 

3.

- Uhuuuuuuuu!!!

- Nossa. Que alegria é essa?

- É hoje, meu. O dia mais esperado do ano.

- Mas hoje não é meu aniversário.

- O engrançadão, não estou falando do seu aniversário. Estou falando do dia que o mundo todo aguarda. A data é tão especial que as pessoas marcam na folhinha para não esquecerem. Todo mundo só fala sobre esse dia. O pessoal da TV, do rádio, dos sites.

- Perae. Estamos em qual mês?

- Novembro.

- Ué, o Natal não é em novembro.

- E quem está falando do Natal?

- Você. A data mais importante do ano é o Natal.

- Que mané, Natal.

- Tá falando do que então?

- Da Black Friday.

 

Silêncio

 

 

 

Não. Você não está errado. A terceira história não foi concluída.

Os dois amigos, que estavam conversando sobre a Black Friday, passaram horas discutindo.

Não, eles não estavam discutindo sobre as melhores ofertas ou Black Fraude, mas sim o termo em si.

Algumas lojas retiraram o termo Black Friday por acharem que há uma conotação racista na palavra black. O que é engraçado pois o termo não tem nada a ver com raça.

Poderia explicar aqui, mas como não dá para resumir (a história da origem do termo é um pouco longa), vou deixar que você, caro leitor, pessoa inteligente e curiosa, pesquise o porquê.

Bem, você deve estar se perguntando o motivo desses diálogos e temática.

É simples de responder.

No dia 20 de novembro celebramos o Dia Nacional da Consciência Negra.

Por que essa data?

Porque nesse mesmo dia, mas no ano remoto de 1695, morria Francisco Nzumbi.

Francisco nasceu em 1655 e com o passar dos anos ficou conhecido como Zumbi dos Palmares.

Palmares era o maior dos quilombos (local escondido, geralmente no mato, onde se abrigavam escravos fugidos).

Mostra a história que foi traído por um dos seus principais comandantes, Antônio Soares. 

Foi morto, esquartejado e sua cabeça foi cortada e exposta na praça do Carmo, em Recife.

Zumbi é celebrado em todo o país como um dos maiores e mais importantes líderes contra a escravidão no Brasil.

Voltando ao ano de 2020, um dia antes da comemoração do Dia da Consciência Negra, um ato hediondo aconteceu numa rede de supermercados francesa, o Carrefour. O que, cá pra nós, não é novidade uma vez que eles estão, vez por outra, envolvidos com cenas e situações desastrosas e polêmicas.

Em Porto Alegre, local onde ocorreu o fato, dois homens espancaram um outro homem até a morte. O nome da vítima é João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos.

O fato por si só já é horrível. Porém, um detalhe deixou o caso em evidência no Brasil e no mundo, fazendo com que até o 7 vezes campeão da Fórmula 1, o britânico Louis Hamilton, postasse sua solidariedade à família da vítima.

Mas qual fato é esse que mobilizou as redes sociais e as emissoras de televisão?

O fato de que a vítima era negra.

“Homem negro é espancado até a morte em supermercado do grupo Carrefour em Porto Alegre”.

Essa foi a manchete de quase todos os jornais, sites, e blogs do Brasil.

Desnecessário dizer que esse foi o tema de quase todos os programas de TV (aberta e paga).

Pessoas se questionando o que levou os envolvidos a cometer tal crime, a não ser racismo.

Um grupo de pessoas contra o racismo dizendo que se a vítima fosse um homem branco não teria sido espancado.

Um outro grupo dizendo que o caso só virou um pandemônio porque usaram a palavra negro na manchete. E usaram de propósito, só para chamar a atenção.

Pessoas dizendo que o caso era parecido com o que ocorreu nos Estados Unidos com George Floyd. Um negro que foi morto por asfixia por um policial que ficou durante vários minutos com o seu joelho no pescoço dele.

Outras pessoas dizendo que brancos morrem tanto quanto negros, mas que a mídia não fala sobre isso pois não dá audiência.

No final das contas, fica a pergunta: foi um crime racial?

Eu creio que sim. As evidências apontam para isso.

Outra pergunta: há racismo no Brasil? 

Evidente que sim. Só uma pessoa muito inocente para achar que não, não é mesmo vice-presidente Mourão?

Mas o que me chamou a atenção não foi a cor da pele da vítima, mas sim a violência dos seguranças.

A vítima já estava mobilizada. Não era necessário continuar espancando-a. Aliás, não era necessário nem começar a espancar.

O correto seria tentar acalmá-la, entender o que estava acontecendo, chamar o gerente da loja, e nunca, NUNCA, começar a socar a vítima, levando-a a óbito.

O despreparo das pessoas que trabalham nesses estabelecimentos e que têm a responsabilidade de manter a ordem é gigantesca.

É preciso que as autoridades fiscalizem com mais rigor as empresas de segurança.

Precisam verificar quem tem capacidade para prestar tais serviços.

A violência nunca dever ser usada, a não ser em casos extremos. O que parece que não era o caso. João Alberto já estava claramente imobilizado, não resistindo mais. Porém, os seguranças continuavam batendo.

E o mais triste. Uma moça, fiscal do supermercado, filmava a barbárie enquanto a vítima era espancada. Lamentável.

Muito se usou a palavra racismo. Você sabe o que significa?

De forma bem simples e objetiva: Racismo – discriminação e preconceito (direta e indiretamente) contra indivíduos ou grupos por causa de sua etnia ou cor. 

Racismo existe no Brasil e no mundo.

Há racismo de brancos contra negros; de negros contra brancos; de brancos contra brancos; de negros contra negros; de ocidentais contra asiáticos; de asiáticos contra ocidentais; de paulistas contra nordestinos; etc...

Há racismo para todas as cores e etnias e raças.

E não há perspectiva de mudança. É triste, mas é verdade.

O problema não está no externo (cor da pele), mas no interno (cérebro).

O ser humano é um bicho complexo. Nem Freud explica.

Jesus Cristo nos deixou uma grande lição quando perguntado qual era o maior dos mandamentos.

Ele disse que são dois: amar a Deus acima de todas as coisas e amar ao próximo como a ti mesmo.

O que Ele quis dizer com amar ao próximo como a ti mesmo?

Simples.

Eu me amo. Logo, eu devo amar ao meu próximo.

Eu quero o melhor para mim. Logo, devo buscar o melhor para o meu próximo.

Agora, quem é o meu próximo?

É toda pessoa que cruza o meu caminho.

E quando falamos toda pessoa, estamos nos referindo a brancos, negros, asiáticos, paulistas, cariocas, nordestinos...

Pessoas de todas as cores e etnias.

Amar talvez soe muito forte para você. Ok. 

Faça o seguinte. Troque amar por fazer o bem. 

Não faça e nem queira o mal para ninguém, independente da cor da pele.

Que nesse Dia da Consciência Negra você possa parar e refletir sobre como tem sido as suas ações com as pessoas que têm a cor da pele diferente da sua.

Que nesse Dia da Consciência Negra você possa parar e refletir sobre como tem sido as suas ações com as pessoas que têm a cor da pele igual a sua.

Melhor ainda...

Que nesse Dia da Consciência Negra você possa parar e refletir sobre como tem sido suas ações com as pessoas.

FELIZ DIA DA CONSCIÊNCIA

 

 

 

 

 

 

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