Ele
olha para baixo e não as vê. Aperta os olhos para poder focar a visão, mas
nada. Elas não estão lá. Olha para o lado e vê uma espécie de tubo saindo do
seu braço. Não lembra de como chegou ali. Ele olha para o teto. Tenta entender
o que está acontecendo. Deve ser o efeito dos remédios. Do seu lado ele vê a
figura de uma mulher com os cabelos grisalhos. Ela está sussurrando. Parece
estar falando com alguém.
Olha
novamente para baixo e não se conforma. Elas deveriam estar ali. Tenta falar,
mas não consegue. Da sua boca não sai som algum. Tenta arrancar o tubo, mas não
tem forças. Já foi uma pessoa forte. Não é mais. Os braços estão finos. As
coxas também. E a barriga, seu grande orgulho, está murcha. Pensa em se
levantar, mas logo muda de ideia. O levantar, até mesmo o andar, não fazem mais
parte da sua rotina.
Aos
poucos reconhece o local onde está e o porquê de estar ali. As coisas começam a
ficar mais claras e isso traz certa tristeza. Olha para o lado novamente e a
mulher de cabelos grisalhos continua ali. Na verdade, ela nunca saiu do lado
dele. Ele então a reconhece. Lágrimas. “Não
mereço tanto amor”, ele pensa. Se pergunta o porquê de ela continuar ali,
ao lado dele. Deveria ir embora, cuidar das coisas dela. Não deveria se
sacrificar tanto.
Tenta
não olhar para baixo novamente, mas e impossível, pois seus olhos são atraídos
para aquela região. Percebe então que, infelizmente, é real: suas pernas não
estão mais lá. Suas amigas que o levaram para os mais diferentes lugares
tiveram que ser separadas do seu corpo. A doença não perdoou. Elas tiveram que
ser sacrificadas, caso contrário todo o corpo padeceria. Elas não estão mais ali,
mas ele parece senti-las. E fica um pouco mais triste quando lembra que com
elas fazia o que mais gostava: dirigir. Amava tirar o carro da garagem e dar
uma volta. Desde a ida a padaria para comprar pão até a viagem ao São José do
Rio Preto.
Olha
para a mulher mais uma vez. Ela não está mais supostamente falando com alguém.
Parou. Está agora encarando ele. “Que
mulher bonita”, ele pensa. Ela parece entender o pensamento e abre um
pequeno sorriso. Mostra uma feição cansada. Precisa dormir.
- Santinha.
- Carlão.
Eles
falam apenas isso. Não precisa muito mais. Ela se levanta e fica ao seu lado.
Começa a alisar o que resta do cabelo dele. Com muito custo ele levanta o braço
e começa a acaricia-la. Santinha começa a chorar. Sente falta do toque dele.
- Quero comer. Tô com fome.
- Vou chamar a enfermeira.
Ele
a puxa de lado e bem baixinho diz:
- Pede pra trazerem melancia.
Santinha
solta uma pequena gargalhada. Melancia é a fruta preferida dele. Fala com a
enfermeira que prontamente atende o seu pedido. A enfermeira gosta deles.
Enquanto comem, conversam mais um pouco. Com a boca cheia de melancia e com um
pouco de caldo escorrendo pela boca, ele pergunta:
- Cadê os meninos?
- Estão trabalhando. Virão mais tarde.
- Estão todos bem?
- Sim.
- Que bom. Saudade deles.
- Eles também estão com saudades.
Ele
dá mais uma mordida na melancia.
- Tava falando com quem?
- O
quê?
- Eu te vi falando com alguém.
- Eu? Não tinha ninguém mais no quarto. Só eu
e... ah já sei. Você me viu orando.
- Estava orando?
- Sim. Pela sua recuperação. O quadro é
difícil, mas para Deus tudo é possível.
Essas
palavras batem forte. Ele põe a melancia de lado. Olha para Santinha fixamente.
Com os olhos lacrimejados e com a voz embargada diz:
- Sinto muito.
Santinha
não entende nada.
- Sente pelo que?
- Por tudo. Por você... pelas crianças...
- Para com isso Carlos.
- É sério. Sinto mesmo. Será que fui um bom
pai para os meninos?
- Bom? Você foi ótimo. Nunca deixou faltar
nada. Trabalhava duro para comprar roupa e colocar comida na mesa.
- Mas... será que ensinei o que é certo para eles?
Será que não fui muito duro as vezes?
- Sim e sim. Você ensinou o que é certo, o
que é ser honesto, o que é ser responsável. E sim, você foi duro com eles, mas
duro na medida certa. Nem mais, nem menos. Bateu quando tinha que bater. Conversou
quando tinha que conversar.
- Mas será que eles vão seguir o que eu ensinei?
- Carlos, isso já não compete mais a você. Você
mostrou o caminho, agora é com eles seguir ou não.
- Por que você é assim?
- Assim como?
- Tão boa comigo.
- Sei lá. Acho que é porque eu te amo.
- Mas porquê? Sei que passamos por muitas
coisas boas, mas também sei que te fiz sofrer muitas vezes.
- Pois é. Fez mesmo.
- Tá vendo? Você concorda!
- Deixa de ser besta, Carlos.
- É sério. Eu tenho sido um fardo pra você.
- Deus não nos dá um fardo maior do que possamos
carregar.
- Você tem sofrido demais. Às vezes eu queria
que isso acabasse logo. Quero deixar você e os meninos em paz.
- Meninos e a menina, não se esqueça.
- Esquecer? Como eu vou me esquecer da
neguinha? Aliás, como ela está?
- Triste.
Carlos
fica em silêncio. Pensa um pouco antes de continuar falando.
- Me desculpe. Me desculpe por
tudo.
Santinha
olha bem pra ele e diz:
- Tudo bem. Eu te perdoo.
Santinha
se levanta e dá um abraço em Carlos. Ele tenta falar algo, mas não consegue. As
palavras estão entaladas na garganta. Ela corta um pedaço de melancia e coloca
na boca dele. Nesse momento a médica entra na sala com uma folha de papel. São os
resultados dos últimos exames. A cara dela não é boa. As notícias também não.
Depois
de 2 semanas Carlão falece.
__________________________________________________________________
Ele
abre os olhos. Olha para frente, para trás, para os lados. Não vê nada a não
ser um mar branco. Parece que está numa nuvem, rodeado por outras nuvens. Está
sentindo algo engraçado. Olha para baixo. Suas pernas estão lá. Ao longe vê
algo reluzindo. Chega mais próximo. É um espelho. Olha e vê um rosto sadio. A barba
está feita e o cabelo está de volta: cheio, volumoso, macio e preto.
Sente
uma mão tocar o seu ombro.
- Olá, tudo bem?
Carlão
se vira e o que vê é incrível. Ele está face a face com um anjo.
- Eu sou o anjo Gabriel.
- Eu... eu... eu...
- Você é o Carlos.
Carlão
está hipnotizado com o tamanho e a beleza do anjo.
- Eu... eu... eu...
- Tudo bem. Todos têm essa reação.
Ele
então toca na testa do Carlão que automaticamente para de gaguejar.
- Eu não acredito nisso. Anjos realmente
existem.
- Claro que existimos.
- Wow. Minha Santinha vai ficar doida quando eu
disser que não apenas vi, mas conversei com um anjo.
- O que ela dirá então quando você disser que
conversou com o próprio Todo Poderoso?.
Carlão
fica estático. Ele iria falar com Ele?
- Vamos! Eles estão nos esperando.
- Como assim ‘eles’?
- A trindade.
O
anjo Gabriel levanta o braço direito e instantaneamente os dois são levados
para uma espécie de jardim. Há uma grande árvore no centro e ao redor é
possível ver flores dos mais variados tamanhos e cores. Uma mais bela do que a
outra.
- Bem. Daqui eu me despeço. Prazer
em conhece-lo.
O
anjo Gabriel levanta novamente o braço direito. Carlão está sozinho. Mas não
por muito tempo.
- Olá, Carlão. Estava esperando
sua presença ansiosamente. Não sabia que já havia chegado. Bem, na verdade eu
sabia, pois sou onisciente, onipresente e onipotente. Hahaha
Carlão
estava na presença de Deus. E Deus tem bom humor.
- Eu sei exatamente o que você
está pensando e sei quais serão suas próximas palavras. Porém, não vou dizer
senão ficaremos aqui num monólogo e não diálogo. Bem, vamos começar pelo
básico. Como vai você?
Carlão
não diz nada. Apenas olha.
- Você está pensando onde estão Jesus
e o Espírito Santo. Bem, eles estão preparando uma festa surpresa pra mim. Você
sabe, né? Hoje é Dia dos Pais.
Carlão
continua em silêncio.
- Chega a ser engraçado, pois eu sei o que eles
estão fazendo afinal de contas eu sei tudo, mas mesmo assim eu faço aquela cara
de que estou surpreso mesmo não estando. Aí a gente dança, come carne maluca e
toma suco e come um monte de brigadeiro. Aaahhh... eu adoro brigadeiro. Você
gosta de brigadeiro?
- Eu...........................gosto?
- Você está me perguntando se você gosta? Claro
que você gosta. Quem não gosta de brigadeiro.
Carlão
começa a colocar os nervos no lugar. Então pergunta.
- O Senhor é um pouco diferente do que eu imaginava.
- Escuto muito isso.
- O Senhor me perdoe, mas eu ainda estou me
acostumando a falar com o Todo Poderoso.
- Te perdoar? Eu já te perdoei lá atrás quando
meu Filho morreu por vocês na cruz.
- Verdade.
Obrigado, Deus.
- De nada, meu filho.
De
repente Carlão se lembra dela, sua Santinha. E se lembra dos meninos. E da
menina, claro.
- Eles estão aqui também?
- Não. Ainda não.
- Nem a Santinha?
- Nem ela. Eu preciso que ela fique por lá
mais um pouco. Ela ainda precisa terminar algumas tarefas que deixei para ela.
- Quando eu a verei de novo?
- Em breve.
Carlão
ameaça ficar triste, mas percebe que não consegue se entristecer mesmo sabendo
que Santinha não está ali com ele. Ao contrário. Ele está muito feliz.
- Não há tristeza aqui. Nem lágrimas. O que impera
aqui é a alegria, a felicidade.
- Wow. Eu me sinto muito feliz.
- Que bom.
- Deus, posso fazer uma pergunta?
- Não precisa. Eu sei o que irá perguntar. E a
resposta é sim, você foi um ótimo pai. Deu algumas vaciladas, como qualquer
outro ser humano, mas no geral fez muito bem o seu trabalho.
Carlão
abre um enorme sorriso. Era tudo o que queria escutar. De repente o anjo
Gabriel aparece.
- Todo Poderoso.
- Pois não.
- Sua presença é requisitada no salão principal.
Deus
olha para Carlão e dá uma piscada.
- Oh, não. Aconteceu alguma coisa?
- Jesus não me disse, oh Todo Poderoso.
- Muito bem. Posso levar meu amigo Carlos
comigo?
- Bem, acho que sim, afinal de contas o Senhor
pode fazer o que o Senhor quiser.
- Hmm... Verdade. Carlos, vamos?
Deus
levanta o braço e instantaneamente eles aparecem no salão principal e na
entrada há uma faixa enorme com os seguintes dizeres: PAIZÃO DO ANO.
__________________________________________________________________
Graças
ao Paizão muitos ainda podem celebrar o Dia dos Pais ao lado dos homenageados. Outros
muitos já perderam esse privilégio.
Se
você faz parte do primeiro grupo... aproveite. Beije e abrace o seu velho. Diga
o quanto o ama. E se a relação entre vocês não está boa, bem, quem sabe esse
não é o momento de mudar as coisas?
Se
você faz parte do segundo grupo, assim como eu, o que fica são as lembranças. Algumas
boas, outras nem tanto. O que é mais do que normal, pois como dizem a vida não
é feita somente de flores. Há também espinhos.
O
legal da vida é que temos o privilégio de ter dois pais. Um terreno e outro
celestial. Um que cuida de nós aqui na Terra. Outro que também cuida de nós
aqui na Terra, mas que continuará cuidando da gente na eternidade.
Independentemente
da sua situação, o meu mais sincero...
FELIZ DIA
DOS PAIS