Natal
A parte do ano que ela mais gosta. É a época de rever alguns irmãos e irmãs, e claro, reunir todos os meninos. Bem, não
mais tão meninos assim. Alguns já têm até filhos. Filhos dos filhos. Mais
conhecidos como netos. Seus netos. Como ela ama aqueles meninos. Ah, e não
podemos nos esquecer da menina. Não, não estou falando de neta porque, por mais
que ela quisesse, seus filhos falharam em lhe dar uma. Estou falando da filha
que ela foi buscar na Bahia. Uma menina bonitinha, que até há pouco tempo brincava
de boneca.
Ela
levanta cedo e vai sozinha ao mercado. Enquanto percorre o caminho sente um
pouco de cansaço. Ela para perto de um carro para recuperar o fôlego. É o coração
que não responde mais como na sua mocidade. No caminho recebe o cumprimento dos
transeuntes que na sua maioria são amigos que, como ela, vivem no bairro há
mais de 35 anos.
Fôlego
recuperado, ela chega ao mercado. Apesar do horário o local encontra-se lotado.
Um desavisado para perto e pergunta sobre o seu marido. Ela fica em silêncio e,
respirando fundo e segurando uma lágrima, diz que ele não está mais entre eles.
O homem se desculpa e sorrateiramente se afasta. Ela não o culpa. É muito
recente ainda. Aquela situação inusitada, mas não inédita, a faz voltar alguns
anos no tempo, quando naquele mesmo mercado, eles compravam juntos as
guloseimas do Natal. Ela tem a cena bem viva em sua memória. Ela procurando o
melhor pernil e ele atrás da melancia perfeita. Ela se lembra perfeitamente de quando
ele pegava melancia por melancia e, como um médico examinando o paciente, meticulosamente
colocava a orelha esquerda próxima a casca e fazia aquela cara de homem
compenetrado. Depois dava dois tapas nela e dependendo do som emitido sabia se estava
boa ou não. Ela não tinha a menor ideia se aquele ritual funcionava ou se era
pura sorte, mas que ele escolhia as melhores melancias, ah escolhia.
Depois
de separar um belo pedaço de pernil e frutas maduras e suculentas, dirige-se ao
caixa. Conversa com uma das suas irmãs. Não de sangue, mas irmã em Cristo.
Falam sobre o verdadeiro significado do Natal. Lembram do nascimento de Jesus.
E depois falam sobre sua morte e ressurreição. Discorrem sobre a frieza do
Natal nos dias de hoje. De como uma data tão especial se transformou em algo
tão banal. A mulher do caixa a chama pelo nome. É a vez dela. Pergunta como a
moça sabe o seu nome. E ela prontamente responde: e como não saber? As duas
conversam enquanto a moça passa a mercadoria por uma máquina que emite um bip.
E enquanto isso um rapaz novinho e com o rosto cheio de espinhas vai
empacotando. Na volta para casa precisa parar mais duas vezes. Coração
realmente não está aguentando mais. A qualquer momento ele pode desistir de
bater. Ela só pede que não seja agora, pois quer passar mais um Natal e Ano
Novo com seus meninos. Ah, e sua menina.
Já
é quase meio-dia. Ela ajeita a cozinha. Panelas espalhadas na pia e sobre a
mesa. Sua menina não tão menina chega da casa da amiga e percebe que ela está
chorando. Pergunta o porquê daquelas lágrimas. Ela diz que é saudade do seu
velho. Nesse momento ele estaria com ela, muito provavelmente descascando
batatas. E cortando cebolas. E tomando sua cervejinha. A menina então abraça
sua mãe e diz que está tudo bem. Ela pode chorar. Aliás, ela também começa a
chorar. Depois de alguns minutos de abraços, soluços e choro, as duas decidem
que precisam voltar a cozinhar. O pernil não ficará pronto no horário caso não
acelerem o processo. Alguém chama no portão. É a Dorinha. Beijos, abraços,
cumprimentos e... mão no pernil. Outra pessoa chama no portão. É a Raimunda. Beijos,
abraços, cumprimentos e... mão na maionese. Aquele ambiente acolhedor a faz ter
forças novamente. O coração volta a bater forte. Não será hoje que ele irá
desistir de bater.
Fim
de tarde e início de noite. As pessoas começam a chegar. Primeiro o seu irmão.
Mais tarde sua irmã. Risadas altas. Hora de colocar o papo em dia. Falam bem de
alguns. Mal de outros. Lembram de histórias de quando eram crianças. Lembram dos
pais. Silêncio por alguns segundos. Então os filhos começam a chegar. Um a um
vão tomando seu lugar na casa. E com eles chegam os netos. E com os netos chega
a correria. E com a correria chega a gritaria.
E as duas se juntam a alegria.
Quase
meia-noite. Mesa posta. Todos a postos. Alguns minutos para o ritual de beijos,
abraços, trocas de caricia e queima de fogos de artifício. Ela está cansada.
Não foi um dia fácil. Ao contrário. Quer deitar um pouco. Não, quer deitar um muito.
O corpo não responde mais como antes. Ele fala mais alto do que seus pensamentos.
Num dia normal já estaria dormindo. Mas não hoje. Hoje não é um dia normal. Ela
olha para o que está acontecendo. Não tem como não se emocionar ao ver irmãos,
filhos e netos ali. Todos reunidos na sua casa. Ela gosta disso. Isso lhe dá
forças para aguentar mais um pouco.
Meia-noite.
FELIZ NATAL é dito e repetido por mais de 5 minutos. Muitos abraços dentro de
casa. E fora de casa também. Os vizinhos se aproximam. A rua está lotada. Diferentemente
do ano passado, hoje não chove. Está um clima gostoso. Depois de beijar e
abraçar todos os netos, filhos, irmãos e irmãs, é hora de confraternizar com o
pessoal da rua. E depois com o pessoal da rua de trás. E depois com o pessoal
da rua da frente. Ela não está só. Seus filhos a acompanham. Seus netos também.
E os filhos dos vizinhos. E seus netos.
Uma
da manhã. Seus pés doem. Sua coluna também. Está com um pouco de dor de cabeça.
Não deveria ter andado tanto. Precisa sentar um pouco. Dois filhos já foram
embora. Tinham outras pessoas para abraçar. Outros dois ficaram. Ela olha para
a mesa e ainda sobra mais da metade do pernil. E vários cachos de uva. Ela olha
para a melancia. Está praticamente intacta. Ela então corta um pedaço. Por alguns
segundos saboreia a melancia só com os olhos. E não consegue evitar. Chora novamente.
A lembrança ainda é viva. Sente algo quente nas suas pernas. Olha para baixo. É
o Derick. Ela o pega no colo e lhe dá um pedaço da melancia. Ele mais que
depressa tira um pedaço enorme, e com a boca cheia de melancia lhe dá um beijo
e diz: te amo vovó. Ela ri. Ela chora. Ela
ri e chora.
Duas
da manhã. Todos se foram. E prometeram estar de volta para o almoço. Afinal,
não há nada mais gostoso do que o famoso prato francês restodontê. Ela precisa descansar. O médico disse que ela não pode
abusar. O coração está grande demais devido sua doença. Seria cômico senão
trágico. Irônico até. Morrer por causa de um coração enorme. Mas não é isso que
as mães têm? Aliás, é impossível medir o tamanho do coração de uma mãe. Ele é
grande, enorme, gigantesco, colossal, descomunal, desmesurado, imenso. Ele também
é magnífico, formidável, sublime, eminente, tremendo, hercúleo. E também pode
ser botaréu, arcobotante, contraforte e pilar.
Ela
deita. Fecha os olhos.
Ela
dorme...
*****
Almerinda
de Brito Reis.
Esse é o nome dela. Bem, alguns a conheciam como Santinha.
Ela
gostava de dar presente, mas preferia estar presente.
Há
uma diferença nada singela nesses verbos.
Dar presente demanda pôr a mão no
bolso e comprar.
Estar presente demanda pôr a mão no
celular e fazer uma ligação. Mas veja bem, ligar e não passar uma mensagem.
Muitos hoje nem se lembram dessa função do celular.
Dar presente demanda comprar um carro de brinquedo.
Estar presente demanda pôr a mão no
volante do carro real e visitar familiares e amigos.
Dar presente demanda gastar tempo em
shoppings, em filas quilométricas.
Estar presente demanda passar tempo (não gastar) com familiares e amigos.
Dar presente pode ser frustrante
caso você compre algo que a pessoa não goste.
Estar presente nunca é frustrante,
pois não há ser humano que não goste de um abraço, de um
afeto. E se há alguém que não goste de abraços é porque essa pessoa não está acostumada a abraçar e
ser abraçado.
Que
nesse Natal você, mais do que dar um presente, que você ESTEJA presente.
FELIZ
NATAL
MERRY CHRISTMAS