5 da manhã. Juliana abre os olhos e se prepara para mais um dia de trabalho. Ela está muito cansada. Sua filha passou a noite inteira acordada e consequentemente ela também. Ela pediu, brigou, gritou até, mas foi tudo em vão. Sua filha estava elétrica e resolveu fechar os olhos somente às 4:00, deixando para ela apenas uma hora de descanso. Ela pensou em não dormir, pois poderia perder a hora. Até que tentou, mas o peso nos olhos foi maior.
Ela olha para sua filha que dorme como um anjo. É uma das cenas mais belas que já viu. Valeu a pena ficar acordada a noite inteira.
Geralmente Juliana toma banho à noite, ao chegar em casa, mas dessa vez ela resolve se banhar de manhã. A água do chuveiro irá ajuda-la a acordar. Ela se troca, coloca o uniforme da empresa, toma um café, checa a bolsa para ver se não esqueceu nada. Abre o portão. Está tudo escuro. Na rua alguns carros, alguns sacos plásticos e pedaços de papel higiênico que o lixeiro deixou pelo caminho na noite anterior.
Enquanto pensa no uso indiscriminado do plástico e o estrago descomunal que traz ao meio ambiente, ela sente algo gelado no braço. Passados alguns segundos, outra sensação gelada. Dessa vez na cabeça. Olha para o alto. É o começo de uma chuva.
O espaçamento entre os pingos fica menor. Ela força os passos e logo chega ao bar do Zé onde há um toldo. Ela não gosta do Zé, mas o agradece em pensamento pelo abrigo. Ela então enfia a mão na bolsa a procura do guarda-chuva. Pelo tato não consegue encontrar. Enfia então o rosto dentro da bolsa e nada. Ela precisa ter certeza. Pega o celular, liga a lanterna, olha mais uma vez e mais uma vez se frustra. O guarda-chuva ficou em casa.
Ao pensar onde poderia tê-lo deixado, ela se lembra que a última vez que o viu estava nas mãos da sua filha. Ela estava tentando estudar e sua filha não deixava. Como qualquer outra criança, ela queria brincar. Juliana então pegou o que tinha mais próximo, nesse caso o objeto em questão, e deu para sua filha. Ela conquistou o sossego que precisava naquele momento, mas agora iria molhar o seu tão bem cuidado cabelo.
A chuva aperta. Por enquanto o toldo do bar do Zé a protege, mas só por enquanto. Como a maré cheia, a chuva vai se aproximando mais e mais, a ponto de começar a molhar o seu pé. E não há nada pior do que trabalhar com o sapato encharcado. Ela, uma pessoa geralmente calma, começa a se irritar, a impacientar-se e olha para o relógio.
- Ai, meu Jesus. Já não bastasse ficar ensopada, vou chegar atrasada ao serviço.
- Fique tranquila. Vai dar tudo certo.
- Quem falou isso?
Olha para todos os lados e não vê ninguém. Ela se encontra sozinha debaixo do toldo do bar do Zé.
- Não, você não está sozinha.
- Quem está falando comigo? Já vou dizendo que não tenho dinheiro e o meu celular é xing-ling.
- Dinheiro? Mas eu não quero o seu dinheiro e nem preciso do seu celular.
- Ai, meu Jesus. O que...
- Estou aqui.
- Quem está aqui? Quem está falando?
- Eu, Jesus.
- Jesus???? Isso é algum tipo de brincadeira?
- Não é brincadeira. Você me chamou e eu apareci. Bem, tecnicamente eu não apareci, mas...
Ela não acredita no que está acontecendo. Será que ela caiu, bateu a cabeça e agora está ouvindo vozes? Ela não se lembra de ter caído.
- Não. Você não caiu. Não, você não sofreu nenhum acidente. E não, você não está sonhando...
- Jesus??? É você mesmo???
- Sim, sou eu mesmo.
- Que honra. Que privilégio. Mas...
- O que Eu estou fazendo aqui?
- Isso mesmo. Wow. Antes de eu falar o Senhor já sabe o que eu vou dizer.
- Pois é. É um dos meus atributos. Bem, eu estou aqui porque você mencionou o meu nome. Em que posso ajudá-la?
- Aaaahhhh... é que começou a chover e...
- Você olhou na sua bolsa e viu que esqueceu o guarda-chuva em casa.
- Isso mesmo.
- Olhe de novo...
Juliana, ainda anestesiada pelo encontro, pega o celular, liga a lanterna e... lá está o guarda-chuva.
- Wow. Está aqui. Eu não acredito nisso. Eu olhei a pouco e não...
- Eu sei. Porém, pode deixar ele aí. Você não irá usa-lo agora.
Imediatamente após as palavras de Jesus, a chuva para, as nuvens se dissipam e o azul do céu começa a aparecer.
- Wow. Que demais. Eu não acredito no que está acontecendo.
- Você não é a única, minha filha. As pessoas levam um tempo para acreditar.
- Eu tenho tanta coisa que gostaria de falar com o Senhor.
- Eu sei. Eu também tenho muita coisa para falar com você, mas agora não vai dar.
- Por quê?
- Porque você está atrasada para o trabalho. E a sua chefe não está de bom humor hoje. Melhor não dar motivo.
Juliana olha para o relógio. Está 15 minutos atrasada, mas se correr pode pegar a perua das 6:00 e assim chegar no horário e evitar uma bronca da chefe. De repente alguém toca no seu ombro. É sua amiga que, assim como ela, trabalha no Shopping Boulevard. As duas se abraçam e durante o trajeto ela vai contando cada detalhe do encontro inusitado.
* * * * * * * * * * * ** * *
- Meu, esse tempo de São Paulo é maluco.
- O que foi?
- Estava chovendo e de repente, do nada, a chuva parou e abriu um solão num céu de brigadeiro.
- Hmmm.. adoro brigadeiro.
- Nossa, mano. Só pensa em comida.
- Eeeeu? Foi você que falou que vai comprar pão e brigadeiro.
- Tá maluco? Eu disse um solão num céu de brigadeiro.
- Vixi. Ouvi errado então.
- Claro que ouviu. É essa porcaria desse fone que você não tira. Fica o tempo todo ouvindo música.
- Ah, deixa eu com minha música. Não enche o meu saco porque senão...
Paulo não teve tempo de terminar a frase. Uma moto desgovernada o acerta em cheio. Ele vai parar de um lado e o seu fone, que raramente fica longe do seu pescoço/orelha, vai parar do outro lado da rua, todo ensanguentado.
- Pauloooooooooo.
Mario não sabe o que fazer. O seu melhor amigo está inconsciente na rua. Ele grita de desespero pedindo ajuda e ao longe ele pode ver uma moto caída no chão. O motorista olha para ele com ar assustado. Aparentemente está bem. Ele então levanta a moto, sobe nela, dá partida e foge.
- Volta aqui seu... Volta aquiiiii...
Mario, um rapaz que muito raramente xinga alguém, começa a usar de várias obscenidades. Ele odeia esse tipo de situação hit-and-run, isto é, a pessoa atropela e foge.
Ele deixa a sua raiva pelo motorista de lado e volta sua atenção para o seu amigo. Paulo não parece nada bem. Há sangue saindo pelo nariz e ouvidos e um grande roxo pode ser visto no seu braço direito.
Enquanto ele abraça o seu amigo acidentado, o que é errado pois os paramédicos dizem que não devemos tocar nem mexer nas pessoas, correndo o risco de agravar a condição do atropelado, uma multidão se forma ao redor deles.
- Alguém aí tem carro??? Alguém pode nos levar ao hospital???
Ninguém se voluntaria pois são todos transeuntes ali. Eles mesmos estavam a pé. Estavam a caminho da escola que não fica muito longe dali. Os dois estavam empolgados, pois era dia de Educação Física, a aula preferida de 8 entre 10 alunos.
- Hey, Paulo. Pauloooo... acorda, mano. Vamos, acorda.
Paulo não se mexe. Está respirando, o que é um alívio, mas não se mexe.
- Ah, por favor Jesus, não deixa o meu amigo morrer.
- Ele não vai morrer.
Mario toma um susto. Ele escuta uma voz suave e ao mesmo tempo firme.
- Quem falou isso???
- EU falei.
Mario olha para todos que estão ali, mas não consegue identificar quem falou.
- Não adianta olhar para eles, pois não foi nenhum deles que falou.
- Então quem é que está falando?
- Quem? Foi você que me chamou e agora pergunta quem?
- Eu te chamei?
- Sim.
- Quando?
- Quando você pediu para que eu não deixasse o seu amigo morrer.
- Hã? Eu não lembro de...
De repente Mario fica mudo. Ele se lembra agora.
- Jesus??? É você?
- Sim, em carne e osso, Não, espera. Na verdade estou aqui em espírito.
- Não acredito. Wow!!! É o Senhor mesmo?
- Bem, até a última vez que chequei, sim.
As pessoas que estão ao redor olham para Mario e não entendem nada. Ele parece estar falando sozinho. Não tem ninguém ali perto dele. Alguns acham que ele foi atropelado também e que deve ter batido a cabeça.
- Jesus, cuida do meu amigo, por favor.
- Fique tranquilo. Ele ficará com alguns arranhões e manchas. Ficará uns dias com dor de cabeça, mas irá sobreviver. O resgate já está a caminho.
- Obrigado, Jesus.
- Não há de que. By the way, muito bonita a amizade de vocês.
- Ah, o Paulo é o meu melhor amigo.
- Eu sei. Mas faça o seguinte: o mesmo carinho e cuidado que você tem por ele, tenha pela sua irmã.
- Como assim?
- Não se faça de desentendido. Vocês dois têm brigado muito ultimamente. Aliás, não estão nem se falando.
- Mas... É que... ela me enche o saco.
- Mario... apenas faça o que estou te pedindo.
- Sim, Senhor.
- Bom menino.
Ao longe é possível ouvir uma sirene tocando. É a ambulância do SAMU chegando. Mario olha para seu amigo Paulo que nesse momento abre o olho. Mario então começa a contar sobre Jesus.
- Paulo, você não vai acreditar. Eu estava falando com...
- Eu sei.
- Você sabe?
- Sim. Ele falou comigo também.
Mesmo com os hematomas, arranhões e sangue, Paulo parece estar bem melhor e enquanto aguardam a chegada da ambulância, vão resenhando sobre o encontro que acabaram de ter.
* * * * * * * * * * * * * * * *
- Amor, eu não sei se quero fazer isso não.
- CALA A BOCA. Já tamo aqui. Não tem volta.
Ela está tremendo como vara verde. Ela não sabe bem ao certo o que está fazendo ali. Ela sabia até ontem a noite, mas agora de manhã não tem tanta certeza assim.
Aline e o seu namorado Gomes estão na Rua Alves. Eles estão prontos para entrar em uma das casas e roubar o que for possível. Passaram um mês observando a casa e os seus moradores, um casal de médicos e seus dois filhos. O marido sai mais cedo de casa, junto com os meninos. Ele deixa os meninos na escola e de lá vai para sua clínica particular. Já a esposa sai de casa meia hora depois.
A médica acaba de sair. A casa está vazia. É o momento.
- Aline, você vai por trás, pula o muro, desativa o alarme e abre o portão.
- Mas e as câmeras?
- Eu não falei que ia dar um jeito nelas? Pois dei. Conversei com o cara que instalou e que também é responsável pela manutenção. É tudo nosso. Pode ir de boas.
- Amor, estou com uma mau pressentimento. Vamos abortar a missão.
- VAMOS ABORTAR MERDA NENHUMA.
- Solta o meu braço.
- Escuta aqui. Nós vamos entrar nessa casa e vamos fazer a limpa. Eu preciso do dinheiro.
- Mas tem outras maneiras de conseguir dinheiro. Nós não somos bandidos.
- Já tentei ganhar dinheiro de forma honesta. CANSEI.
- Mas amor...
- CHEGA DE PAPO. Vai lá para o fundo e pula o muro.
Gomes está alterado. Aline nunca o viu daquele jeito, nem mesmo quando bebia umas a mais. Ele iria roubar aquela casa e ela se arrependeu de concordar com aquilo.
Enquanto caminha para os fundos da casa, o seu celular toca. Ela estava tão nervosa que acabou se esquecendo de colocar no modo avião, como havia combinado com o seu namorado. É o seu irmão. Ela atende e fala baixinho.
- Mario?!!? O que você quer?
- Oi, mana. Tudo bem?
- Mais ou menos. Estou no meio de uma situação aqui.
- Situação? Qual situação?
- Não importa. O que você quer?
- Queria falar com você. Ouvir sua voz.
- Ahhh tá. Está um tempão ser falar comigo e de repente me liga. Do nada.
- Sim. É que hoje eu tive uma conversa com alguém... Wow. Você não vai acreditar... Eu falei com...
Gomes dá um tapa no braço da Aline, derrubando o celular da sua mão.
- Que merda é essa? Tá falando com quem?
- É o meu irmão.
- Eu não falei para desligar essa merda de telefone?
- Eu sei, mas é que...
- Sem mas.
Gomes pega o telefone do chão, desliga e devolve pra ela.
- Foco. Preciso que você se concentre.
De forma mais carinhosa agora, Gomes fala com Aline.
- Amor, preciso de você 100% aqui. Depois você fala com seu irmão.
Aline não gostava quando Gomes gritava com ela, mas quando ele usa aquela voz de galã de novela, ela não consegue resistir. Não consegue dizer não.
- Ok. Vamos acabar logo com isso.
Do outro lado da linha, Mario não tem ideia do que está acontecendo. Não sabe o que sua irmã está fazendo nesse exato momento. Não tem a menor ideia sobre qual situação ela está metida.
Aline está no fundo da casa. Na sua frente está o muro. É alto, mas escalável. Ela olha e vê que tem condições de subir e pular para dentro. Porém, ela fica ali pensando alguns segundos sobre o que está acontecendo.
- Jesus do Céu!!! O que estou fazendo?
- Coisa boa que não é.
Aline se assusta. Olha para o terreno atrás dela e não vê ninguém.
- Quem está ai? Quem falou comigo?
- EU.
- Eu quem?
- Bem, você me perguntou o que está fazendo aqui e eu respondi que coisa boa não é.
- Isso é uma pegadinha?
- Não. É real.
- Jesus???? É você???? De verdade????
- Sim. Sou eu!!! De verdade!!!
- Mas cadê o Senhor? Não consigo te ver.
- Bem, ninguém consegue me ver. Ainda não. Mas estou aqui.
- Wow. Minha mãe não vai acreditar. Ela te ama. Ela fala sobre o Senhor todos os dias.
- Eu sei.
- E o meu irmão Mario então. Ele vai pirar.
- Eu falei com ele hoje.
- O Senhor falou com o Mario???? Wow. Isso é demais. Mas, o que o Senhor está fazendo aqui?
- Você mencionou o meu nome. Aqui estou. Bem, acho que agora quem tem que perguntar sou eu. O que você está fazendo, Aline? Roubando uma casa. Que coisa feia.
- Eu sei que não é correto.
- Então por que está fazendo isso se é errado?
- Foi o meu namorado que me obrigou a...
- Pera pera pera. Ele colocou uma arma na sua cabeça e te fez estar aqui hoje?
- Não. Mas...
- Você está aqui por sua própria vontade. Você poderia ter dito não pra ele. Mas você disse sim, logo...
- Wow. Quando o Senhor coloca dessa maneira...
- Bem. Não é tarde para fazer o que é certo. Fique aqui.
Ao longe é possível ouvir uma sirene.
- É a polícia??? E agora? Vou ser presa.
- Calma. Não é a polícia. É apenas a ambulância do SAMU.
- Ufa.
- Nesse exato momento, o seu namorado está fugindo achando que é a polícia.
- Fugiu e me deixou aqui??
- Exatamente.
- Filho de uma...
- Olha a boca suja.
- Perdão, Jesus.
- Está perdoada. Bem, agora quero que você vá pra casa e pense em tudo que aconteceu aqui. Pense no seu relacionamento com o seu namorado. Vale a pena?
- Acho que não.
- Bem, eu também acho que não. Ah, e volte a falar com o seu irmão. Ele te ama e sei que você também o ama. Está na hora de vocês dois pararem com essa bobagem.
- O Senhor tem razão.
Aline fecha os olhos e respira fundo.
- Jesus, posso perguntar...
De alguma maneira, Aline consegue perceber que Jesus não está mais ali. Se foi. Ela então começa a andar. Vai pra casa. Tem muita coisa para falar com sua família, principalmente com seu irmão. Principalmente sobre esse...
ENCONTRO