Estou no trabalho e, como sempre, não
olho para os lados. Gosto de me concentrar ao máximo, pois distrações não levam
a lugar algum. Ao contrário, te tiram da rota e uma coisa que não posso fazer
agora é me desviar do meu objetivo principal: terminar o projeto.
No meio da página final recebo uma
notificação de e-mail. É de uma amiga minha que vive na China. Sempre que pode,
ela me manda informações sobre produtos mais baratos. Não sou um consumidor
ferrenho, porém sempre que vejo que posso economizar um bom dinheiro, eu
encomendo algo com ela.
Ignoro a notificação. Estou atrasado com o projeto e tudo por culpa
do perfeccionismo que herdei da minha mãe. E o engraçado era que eu costumava
reclamar com ela sobre essa maldição. Em tudo ela sempre levava mais tempo do
que os outros. Chegava a ser aborrecedor.
Certo dia, cansada dos meus chiliques,
resolveu me contar a história do dia que me concebeu. Perfeccionista que é,
preparou tudo de forma detalhista. Não queria nada fora do lugar. Sim, é
exatamente o que você está pensando. Foi na casa dela, do jeito dela, na hora
que ela quis.
Ela pensou em tudo, até na forma como
iria seduzir o meu pai, o que não era muito difícil. Diz ela que colocou o seu
melhor vestido, passou o perfume que deixava o meu pai enlouquecido e fez o
prato predileto dele: lasanha. Ele caiu como um patinho. Até os dias de hoje
ele acha que sou um acidente de percurso.
Estou quase no fim do projeto quando a
notificação do e-mail começa a piscar freneticamente, o que significa que o
assunto é urgente. O que será que minha amiga quer falar tão desesperadamente
que não pode esperar um pouco? Será que alguém havia morrido?
Salvo o projeto, algo que nunca mais
deixei de fazer depois que tive uma péssima experiência no nosso maior cliente,
e vou até onde fica a máquina de café. Preparo o meu expresso, pego um pedaço
de bolo de aniversário da Pamela que sobrou do dia anterior e volto para minha
mesa.
Abro a caixa de entrada dos meus
e-mails e clico na mensagem da minha amiga.É um vídeo. No início penso que é um
daqueles trailers de filmes onde há um vírus devastador que acaba com metade da
população do planeta. O enredo do vídeo é sempre o mesmo.
Ruas vazias... Hospitais lotados... O
vídeo mostra pessoas chorando, pessoas morrendo, jornalistas, cientistas, médicos
e supermercados. Todo o cenário que encontramos nos filmes produzidos para nos
assustar. E como dizem, quem já assistiu a um filme já assistiu a todos.
Fico esperando a parte final pra saber
quem são os atores, quem é o diretor, quando minha amiga aparece na tela. Ela
está bem diferente de quando a vi pela última vez num vídeo onde ela mostra as
belezas da cidade. Ela está usando uma máscara, mas tudo bem porque ela é
enfermeira.
Os seus olhos estão vermelhos como se
estivesse chorando a um bom tempo. Atrás da máscara sua boca se mexe, mas não
ouço nada. Aliás, desde o início do vídeo eu não ouço nada. Será que ela me
enviou um vídeo sem áudio? Duvido muito. Procuro o ícone do auto falante e
clico. Tomo um grande susto.
Minha amiga chora desesperadamente. Eu
quase não entendo o que ela diz. Paro o vídeo e volto para a parte onde ela
começa a falar. Dessa vez estou prestando mais atenção. Dessa vez eu consigo
entender o que ela diz. E o que ela diz não é nada alentador. Muito ao
contrário.
No meio do choro, é possível entender
que um novo vírus está se espalhando pelo país e mais de 200 pessoas morreram.
Ela fala que esses são os números oficiais, mas se tratando de China, devemos
duvidar. Só no hospital onde ela trabalha, mais de 5.000 pessoas foram
infectadas e quase 130 morreram.
Ela não sabe informar qual o nome do
vírus e como ele se espelha. Os cientistas ainda estão estudando, o que deixa a
situação mais assustadora e a população mais aterrorizada. Ela insiste que eu transmita
a mensagem para as pessoas que eu conheço, isto é, familiares, amigos, colegas
de trabalho.
Olho para o relógio. Tenho 20 minutos
para entregar o projeto e ainda preciso revisar o que escrevi. Não quero
cometer erros de ortografia e concordância verbal, apesar de o word me ajudar
bastante marcando os erros.
Penso na minha amiga pedindo
desesperadamente que eu espalhe o vídeo para o maior número possível de
pessoas. Ao mesmo tempo penso no
projeto. O que é mais importante agora? Neste momento o projeto é mais
importante, pois o meu emprego está em jogo.
Semana passada recebi um ultimato da
minha chefe. Ela disse que se eu não impressionar o cliente, posso pegar minhas
coisas e procurar emprego em outro lugar. E como emprego não está fácil pra
ninguém, preciso manter esse a qualquer custo.
Penso mais uns segundos sobre o vídeo
da minha amiga e começo a racionalizar. A China está do outro lado do mundo.
Até o vírus chegar no Brasil, bem, vai demorar muito. Se é que vai chegar. Esse
vírus deve ser mais uma daquelas gripinhas que aparecem a todo instante.
E como eu tomo muita vitamina C todos os dias e sou praticamente um atleta, não
vou pegar esse resfriadinho.
Decisão tomada. Volto para o meu projeto.
Como dito antes, tenho menos de 20 minutos para terminá-lo. Deixo o vídeo da
amiga para mais tarde. Mais tarde eu repasso o vídeo para todos os meus
contatos. Mais tarde eu me informo melhor sobre esse tal vírus. Se for o
caso, mais tarde eu me previno. Mais tarde eu levo essa situação
a sério. Mais tarde... Mais tarde...
Mais tarde pode ser muito tarde!!!
Eddie
King – 03.04.2020