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domingo, 5 de abril de 2020

MAIS TARDE



Estou no trabalho e, como sempre, não olho para os lados. Gosto de me concentrar ao máximo, pois distrações não levam a lugar algum. Ao contrário, te tiram da rota e uma coisa que não posso fazer agora é me desviar do meu objetivo principal: terminar o projeto.

No meio da página final recebo uma notificação de e-mail. É de uma amiga minha que vive na China. Sempre que pode, ela me manda informações sobre produtos mais baratos. Não sou um consumidor ferrenho, porém sempre que vejo que posso economizar um bom dinheiro, eu encomendo algo com ela.

Ignoro a notificação.  Estou atrasado com o projeto e tudo por culpa do perfeccionismo que herdei da minha mãe. E o engraçado era que eu costumava reclamar com ela sobre essa maldição. Em tudo ela sempre levava mais tempo do que os outros. Chegava a ser aborrecedor.

Certo dia, cansada dos meus chiliques, resolveu me contar a história do dia que me concebeu. Perfeccionista que é, preparou tudo de forma detalhista. Não queria nada fora do lugar. Sim, é exatamente o que você está pensando. Foi na casa dela, do jeito dela, na hora que ela quis.

Ela pensou em tudo, até na forma como iria seduzir o meu pai, o que não era muito difícil. Diz ela que colocou o seu melhor vestido, passou o perfume que deixava o meu pai enlouquecido e fez o prato predileto dele: lasanha. Ele caiu como um patinho. Até os dias de hoje ele acha que sou um acidente de percurso.

Estou quase no fim do projeto quando a notificação do e-mail começa a piscar freneticamente, o que significa que o assunto é urgente. O que será que minha amiga quer falar tão desesperadamente que não pode esperar um pouco? Será que alguém havia morrido?

Salvo o projeto, algo que nunca mais deixei de fazer depois que tive uma péssima experiência no nosso maior cliente, e vou até onde fica a máquina de café. Preparo o meu expresso, pego um pedaço de bolo de aniversário da Pamela que sobrou do dia anterior e volto para minha mesa.

Abro a caixa de entrada dos meus e-mails e clico na mensagem da minha amiga.É um vídeo. No início penso que é um daqueles trailers de filmes onde há um vírus devastador que acaba com metade da população do planeta. O enredo do vídeo é sempre o mesmo.

Ruas vazias... Hospitais lotados... O vídeo mostra pessoas chorando, pessoas morrendo, jornalistas, cientistas, médicos e supermercados. Todo o cenário que encontramos nos filmes produzidos para nos assustar. E como dizem, quem já assistiu a um filme já assistiu a todos.

Fico esperando a parte final pra saber quem são os atores, quem é o diretor, quando minha amiga aparece na tela. Ela está bem diferente de quando a vi pela última vez num vídeo onde ela mostra as belezas da cidade. Ela está usando uma máscara, mas tudo bem porque ela é enfermeira.

Os seus olhos estão vermelhos como se estivesse chorando a um bom tempo. Atrás da máscara sua boca se mexe, mas não ouço nada. Aliás, desde o início do vídeo eu não ouço nada. Será que ela me enviou um vídeo sem áudio? Duvido muito. Procuro o ícone do auto falante e clico. Tomo um grande susto.

Minha amiga chora desesperadamente. Eu quase não entendo o que ela diz. Paro o vídeo e volto para a parte onde ela começa a falar. Dessa vez estou prestando mais atenção. Dessa vez eu consigo entender o que ela diz. E o que ela diz não é nada alentador. Muito ao contrário.

No meio do choro, é possível entender que um novo vírus está se espalhando pelo país e mais de 200 pessoas morreram. Ela fala que esses são os números oficiais, mas se tratando de China, devemos duvidar. Só no hospital onde ela trabalha, mais de 5.000 pessoas foram infectadas e quase 130 morreram.

Ela não sabe informar qual o nome do vírus e como ele se espelha. Os cientistas ainda estão estudando, o que deixa a situação mais assustadora e a população mais aterrorizada. Ela insiste que eu transmita a mensagem para as pessoas que eu conheço, isto é, familiares, amigos, colegas de trabalho.

Olho para o relógio. Tenho 20 minutos para entregar o projeto e ainda preciso revisar o que escrevi. Não quero cometer erros de ortografia e concordância verbal, apesar de o word me ajudar bastante marcando os erros.

Penso na minha amiga pedindo desesperadamente que eu espalhe o vídeo para o maior número possível de pessoas.  Ao mesmo tempo penso no projeto. O que é mais importante agora? Neste momento o projeto é mais importante, pois o meu emprego está em jogo.

Semana passada recebi um ultimato da minha chefe. Ela disse que se eu não impressionar o cliente, posso pegar minhas coisas e procurar emprego em outro lugar. E como emprego não está fácil pra ninguém, preciso manter esse a qualquer custo.

Penso mais uns segundos sobre o vídeo da minha amiga e começo a racionalizar. A China está do outro lado do mundo. Até o vírus chegar no Brasil, bem, vai demorar muito. Se é que vai chegar. Esse vírus deve ser mais uma daquelas gripinhas que aparecem a todo instante. E como eu tomo muita vitamina C todos os dias e sou praticamente um atleta, não vou pegar esse resfriadinho.

Decisão tomada. Volto para o meu projeto. Como dito antes, tenho menos de 20 minutos para terminá-lo. Deixo o vídeo da amiga para mais tarde. Mais tarde eu repasso o vídeo para todos os meus contatos. Mais tarde eu me informo melhor sobre esse tal vírus. Se for o caso, mais tarde eu me previno. Mais tarde eu levo essa situação a sério. Mais tarde... Mais tarde...

Mais tarde pode ser muito tarde!!!



Eddie King – 03.04.2020