Cresci ouvindo Beatles. Não entendia muito bem o que eles diziam uma vez que o inglês não é minha língua materna. Porém nunca fiquei indiferente a língua universal. O meu gosto pelas bandas americanas e inglesas fez com que eu estudasse na Dreaming School.
Semana
passada me vi preso numa encruzilhada. Fui até o hospital com minha avó. Ela
não estava passando muito bem já há algum tempo. Liguei para o trabalho e
informei meu chefe que iria me atrasar. Ele, como boa pessoa que é, me deu o
dia de folga.
Tirei
o carro da garagem, coloquei minha avó no banco de trás e a levei ao hospital
público mais próximo de casa. Não, não temos convênio. Tentei contratar os
serviços da Unimed, mas infelizmente não é possível pagar com o salário que
ganho.
Ao
chegar no hospital pedi ajuda para um enfermeiro que fumava do lado de fora da
recepção. Ele prontamente buscou uma cadeira de rodas e juntos ajeitamos minha
avó na cadeira. Obviamente ela reclamou, pois a cadeira era dura como pau.
Deixei
minha avó junto com a cadeira de rodas do lado do sofá e fui preencher a
papelada burocrática. Tive que esperar um bom tempo. Como era previsível, o
hospital estava lotado. E como dizem na minha terra, tinha gente saindo pelo
ladrão.
Papelada
preenchida, agora era esperar a vez da minha avó ser atendida. Ao ouvir o nome dela
ser proferido por um enfermeiro alto, gordo e muito mal-humorado, a levei na
cadeira de rodas até a sala 215. O que vi pelo caminho é quase indescritível e aterrorizante.
Havia
pessoas jogadas por todo o corredor. Uma visão não muito fácil de ser digerida.
E se há um lugar que não demonstra discriminação é o hospital. Havia doentes de
todas as idades e sexo. Crianças, adolescentes, jovens e idosos. Cada um
lutando sua guerra particular.
Parei
em frente ao número 215. Como não podia ser diferente, havia umas 20 pessoas na
frente da minha avó. E não havia médico naquele momento. Ele tinha ido almoçar
e voltaria em alguns minutos que depois se transformariam em horas.
Nesse
meio tempo de espera, o sanduiche que comi na noite anterior resolveu me fazer
uma visita. A natureza me chamava com cada vez mais força. Avisei minha avó que
iria logo ali. Dei um beijo na sua cabeça grisalha e fui atrás de um banheiro
para me aliviar.
Encontrei
três banheiros e todos estavam ocupados. Comecei a suar. O sanduiche estava
ficando nervoso. Estava com pressa. Queria sair logo. Andei mais um pouco e
achei um banheiro livre. Era feminino. Olhei para os dois lados, pensei m voz
alta ‘direitos iguais’ e entrei.
Depois
de me aliviar, lavei as mãos e joguei um pouco de água no rosto e no cabelo.
Não sei quanto tempo fiquei dentro do banheiro, mas deve ter sido por um longo
tempo, pois quando saí as mulheres me olhavam de forma fulminante como se eu
fosse Jair Bolsonaro.
Ao
voltar percebi que havia me perdido. Não reconhecia mais onde estava. Os
corredores tinham uma cor diferente da que eu lembrava. Já não havia tanta
gente nos corredores e o lugar parecia muito mais limpo. Olhei na parede e vi a
inscrição Ala dos pacientes terminais.
Naquele
momento entendi o porquê do silêncio sepulcral. Não se ouvia as pessoas falando
e sim as máquinas trabalhando. Olhei dentro de uma das salas e vi um enfermeiro
trocando o curativo de um dos pacientes que agonizava de dor. O enfermeiro
então aplicou-lhe uma injeção.
O
enfermeiro saiu da sala. Foi buscar uma pomada que estava do outro lado do
hospital. Pelo menos eu acho que é isso que ele foi fazer. Minha curiosidade me
fez aproximar da cama. O paciente estava com os olhos fechados. Não parecia
sentir mais tanta dor.
Cheguei
mais perto da cama onde ele encontrava. Seu corpo estava todo coberto de
curativos. Da canela à altura do peito. Alguma coisa muito terrível aconteceu
com ele. Fiquei ideando o que ele havia sofrido para chegar até ali, naquele
momento angustiante.
Ao
olhar para os seus pés percebi que havia um formulário preenchido. Estava preso
a uma prancheta. Era o prontuário médico. Fiquei na dúvida se eu olhava ou não.
Alguém poderia dizer que era invasão de privacidade. Considerei essa
possibilidade.
Fiquei
olhando um tempo para o paciente. Gastei um outro tempo olhando para o
prontuário. Enquanto isso a curiosidade aumentava. Nisso me veio à lembrança o
enfermeiro. Onde ele estava? Já deveria ter voltado. Será que ele foi buscar a
pomada em outro hospital?
O
prontuário continuava olhando pra mim. Não pude resistir mais. Olhei para o
paciente que continuava com os olhos abertos. Fui até a porta da sala e chequei
se vinha alguém. Ninguém a vista. Mansamente cheguei perto dos pés do paciente
e cuidadosamente peguei o prontuário.
O
nome dele era Maicon. Idade, estado matrimonial e família desconhecidos. Talvez
Maicon tenha desmaiado antes de passar essas informações e chegou ao hospital
sem documentos. Era uma teoria plausível para a ausência de informação.
O
nome Maicon não me saia da cabeça. Como bons brasileiros que somos, acabamos
copiando tudo que vem da terra do tio Sam. Até os nomes. Já vi Estéfani, Uelinton,
Jhennifer, Khratrein entre outros. Levamos ao pé da letra a máxima de que nada
se cria, tudo se copia.
Enquanto
eu checava o prontuário, senti alguém segurando minha mão. O paciente estava
acordado. Seus olhos estavam arregalados. Estava tentando dizer alguma coisa,
mas não conseguia falar. Fiquei angustiado. Ele cada vez mais apertava minha
mão.
Olhei
nos corredores a procura de algum funcionário do hospital. Não havia ninguém. Continuava
apenas eu e os doentes, pacientes terminais. Voltei para o quarto. O paciente
estava tentando arrancar os curativos. Eu o impedi. Ele então se virou, agora
podendo falar, e disse:
- Kill me!
A
princípio achei que ele tinha pedido para que o matasse.
- Não entendi. Fale novamente.
- Kill meeee!!!
Confirmado.
Ele realmente disse kill me. A tecla SAP do meu cérebro foi automaticamente
pressionada e começamos um diálogo.
- Kill you? Why?
- It
hurts. It hurts really bad.
- I can
give you something for your pain.
- Are you
a doctor?
- No, I
am not.
Aquela
foi uma ótima pergunta. Por um acaso eu sou médico para prescrever
medicamentos? Bem, aquela foi a primeira coisa que me veio a cabeça. O que mais
eu poderia dizer? “Claro que eu posso
mata-lo. Matei uns 5 na semana passada.”
- Please,
kill me. I want to die.
- Hang in
there, buddy. I’ll call
someone.
Saí
mais uma vez da sala a procura de alguém que pudesse me ajudar e nada. ONDE
ESTAVAM OS MÉDICOS E ENFERMEIROS??? Tentei distrai-lo com algumas perguntas.
- You’re
definitely not from Rio. Where are you from?
- I’m
from New York.
- What
are you doing here?
- I’m on
vacation.
- Cool.
Are you alone in Rio?
- Yeah.
it’s my first time. And…
AAAAAAAAAHHHHHHH
O
paciente soltou um grito estrondoso.
- It
HUUUUUUUURTS!!!! KIIIIIILL ME.
- I told
you. I can’t do that.
- SO FIND
SOMEONE WHO CAN.
- There’s
no one here.
-
AAAAAAAAAHHHHHHH!!!
A
dor estava cada vez pior. Como eu sei? Os gritos estavam mais altos e mais aterrorizantes.
Um grito daquela altura seria capaz de acordar um defunto do seu sono eterno.
Olhei para a cama de outro paciente para checar se ele tinha acordado. Dormia
como um anjo.
O
paciente voltou a falar.
- I am
begging you. Please, end my life. I can’t live like this. I can’t live feeling
this pain.
- I am so
sorry but there’s nothing I can do. What
happened?
Imediatamente
após minha pergunta ele parou. Os seus olhos miraram um ponto preto da parede e
como se ele estivesse revendo a cena de um filme, começou a narrar.
- I was on a bus heading to Copacabana. I was very
excited. After all it was my first time in Rio. I was looking through the
window, delighted with the scenario. There were people walking on the sidewalk;
people jogging; people riding the bike; people playing beach soccer. Suddenly
the bus driver stopped the bus abruptly. I almost hit my head against the
bench. Then he opened the door and two teenagers got on the bus and started
shouting. The scene is still vivid in my head.
- Eae, cambada. Todo
mundo quietinho. É um assalto. Vamos levar tudo o que vocês têm. E não quero ouvir choro.
- I don’t speak portuguese but I could understand what
he was saying. Like English, crime is also universal. I kept quiet. I didn’t
say anything.
-
Vão passando a carteira, relógio, celular... tudo. Isso aí. Quanto mais rápido
vocês entregarem os pertences, mais rápido nós vai embora. E vocês vai
embora também. Pra casa, pra praia, pro raio que o parta.
- They were laughing their heads off. And that pissed me off. They shouldn’t be doing that. Then…
-
Eaeeeee Zé. Se liga. Tem um gringo aqui. Nós tiro a sorte grande. Nós vai levar dólar pra casa hoje. Ééééé...
vamo come picanha. Vamo gringo. Passa tudo.
- He took my wallet, my phone, my passport… He took
everything. All of sudden he started staring at my hair. Well, my hair is red
now. Because of SF 49rs. But he thought it was because of something else.
-
Xiiiiiiiii Zé. Se liga aqui. O gringo tá com cabelinho vermelho. Eae, seu bosta. Você é flamenguista?
- I thought, “What the hell is this’?
-
Responde seu merda. Você torce pros urubus? Deu ruim então hein. Aqui é Vasco.
Aqui é preto e branco. Here... Vasco. Black and White. Not red.
- I could understand he was talking about the color of
my hair because he kept touching it. He was mad because it was red. So, I told
him I would dye. I think
he didn’t understand.
-
O que você falou aí? Dy... dy? Que merda é essa? E aí Zé. O que o gringo disse?
-
Mano, ele tá dizendo que quer morrer.
-
O quê? Como você sabe disso?
-
Sou fã de filmes de ação e os cara fala
direto isso aí. Die... I wanna die...
I will kill you… Quero morrer… Vou te matar…
-
Eae, Zé. Me deixou orgulhoso agora. Bem, então o gringo quer morrer. Aaaaahhh... acho que vou facilitar a vida dele. hahaha
- For me
they were still talking about my hair, so I kept saying that I would dy. I would dye.
-
Mano, esse cara não para de falar que quer dye. Já to ficando de saco de cheio.
- I noticed he was getting nervous. Well, it was the
colour of my hair so I kept saying… DYE!
DYE! DYE! DYE!
-
Agora já deu. Vou acabar com esse gringo.
- He took a gallon of gasoline and poured it on my
body. Everywhere except the head. The he literally lighted me up. I was a
torch. A human torch. I ran out of the bus. Both crooks ran away towards the
favela. Some people tried to pull out the fire. I passed out. When I woke up,
well… here I am.
Que
história mais maluca. O gringo dizendo que iria pintar o cabelo (dye) e os bandidos
achando que ele queria morrer (die). Fiquei estupefato não somente com a
história, mas porque ele contou-a sem dar um grito de dor. Mas só foi eu pensar
isso que...
- AAAAAAAAHHHHH. Where’s the doctor?
- I don’t
know.
- Please,
kill meeeee
- No, I can’t.
Enquanto
eu tentava faze-lo VIVER, ele buscava apenas MORRER. Eu até entendia sua dor e
me condoía junto, porém não cabia a mim ou a qualquer outro ser humano tirar
a vida dele ou de qualquer outro ser humano.
Me
peguei pensando nos países onde se há pena de morte. Pensei também nos
pacientes que ficam por meses, até anos, numa cama, em estado vegetal. Fiquei imaginando
a família dessas pessoas. No caso dos detentos, na família das vítimas.
E
se acontecesse comigo? E se alguém
pusesse fogo em mim e a dor fosse insuportável? E se alguém cometesse assassinato
contra um ente querido meu? E se eu sofresse não uma, mas três paradas
respiratórias e como consequência precisasse de cuidados especiais?
Eu
oraria? Eu pediria oração? Diria que Deus não existe? Diria que Deus sim existe?
Ficaria feliz com a ajuda dos meus entes queridos? Ficaria triste por estar
empatando a vida dos meus entes queridos? Pediria para Deus me ajudar? Pediria para
Deus me levar?
De
repente senti alguém colocar a mão no meu ombro. Era o enfermeiro. Na sua mão direita
ele segurava a pomada. Perguntei o porquê da demora. Ele disse que devido ao
corte no orçamento teve que ir buscar a pomada em outro hospital.
Ele
então começou a passar a pomada pelo corpo do paciente que imediatamente mudou
sua fisionomia. Estava mais calmo. Não sentia mais tanta dor. Sentia dor sim, mas
era suportável. Muito diferente do que estava sentindo há alguns minutos.
Enquanto
o enfermeiro passava a pomada, ia explicando para o paciente que aquela
sensação de alívio era temporária. Ele precisaria de um transplante de pele. Ele
faria um enxerto. Não pude aguentar e então fiz a observação.
- Você sabe que ele não te entende, certo?
- Como assim?
- Ele é gringo. Ele não fala Português e sim
inglês.
- Fala sim. Quando ele eu tentei falar com ele,
mas como estava com muita dor, a única que entendi é que o nome dele é Maicon.
Coloquei
a mão na testa. Agora estava entendendo.
- Fiz várias perguntas e ele só
gritava Maicon.... Aaaaahhh... Maicon... Aaaaahhh...
Comecei
a sorrir. Não era possível.
- Ele falou outras coisas que eu não entendi.
Estava balbuciando. Acredito que era o efeito das queimaduras.
- Não, meu amigo. Não era o efeito das queimaduras.
E ele não estava balbuciando. Ele estava falando em inglês. Por isso que você
não entendeu.
- Aaaaaaaaahhhhhh!!!
- E muito provavelmente o nome dele é Michael
e não Maicon.
- Aaaaaaaaahhhhhh!!! Mas como ia saber disso?
Ele não tinha nenhum documento com ele.
- É que ele foi assaltado e levaram todas as
coisas dele.
- Aaaaaaaaahhhhhh!!!
- Bem... a pergunta que não quer calar: cadê
os médicos? Melhor, cadê o médico que cuidou dele quando ele chegou.
- Então, não havia médico quando ele chegou. Eu
que cuidei dele. Quando ele estava sedado e dormindo, um médico desceu e deu
uma olhada nele. Recomendou essa pomada e pediu para reservar uma sala de
cirurgia.
Ficamos
ali discutindo a precariedade do sistema de saúde do nosso país com ênfase no
que vem acontecendo no Rio de Janeiro quando me lembrei da minha avó. MEU
DEUS!!!! Como será que ela estava? Será que tinha sido atendida?
Pedi
explicações para o enfermeiro de como chegar até a sala 215. Não era difícil.
Me despedi de Michael e do enfermeiro e saí correndo. Que cabeça a minha. Deixar
minha avó todo esse tempo sozinha. E ela definitivamente não pode ficar só.
Ao
chegar na sala de espera, lá estava ela. Assistia ao programa Vale Apena Ver de Novo. Era mais um
capítulo da novela Avenida Brasil. Minha
avó não perdia um capítulo mesmo sabendo o que iria acontecer, afinal de contas
ela estava assistindo de novo.
Ao
me ver abriu um sorriso. Perguntou onde eu estava e porque demorei tanto. Comecei
a explicar que me perdi e fui para na Ala dos pacientes terminais. Quando iria
começar a relatar minha aventura, o médico chamou o nome dela.
Levantei
e empurrei a cadeira de rodas em direção a sala do médico. Ao entrarmos na
sala, o médico pediu para que eu sentasse e começou a olhar a ficha da minha
avó. Enquanto ele falava, meus olhos se fixaram no seu jaleco. Nesse momento eu
não pude deixar de sorrir.
O
meu sorriso passou para uma pequena gargalhada. O médico não estava entendendo
nada. Muito menos minha avó. Ela puxou meu braço como que reprovando minha
atitude. Enquanto isso o médico continuava sem entender.
O motivo dos meus olhos não desgrudarem do jaleco do médico e eu não conseguir
conter uma gargalhada era o que estava escrito nele.
Dr.
Maicon Jécson Pereira da Silva.
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Meu tio Alípio, um senhor de 70 anos e que sempre expressou alegria, está nesse momento numa cama em um hospital de Campinas. Os médicos já sentenciaram: 50% chances de vir a falecer e 50% chances de viver o resto da vida numa cama.
Bem,
isso é o que a ciência disse. Eu creio na ciência, mas creio também em Deus. E Ele
e somente Ele pode dar o veredito final. Pode tanto acontecer o que os médicos
disseram, ou não. Ou Deus pode mudar essa situação, ou não. O que cabe aos entes
queridos é orar e esperar.
E
estamos orando... e estamos esperando.