Estão todos reunidos no restaurante mais badalado da cidade. A mãe limpa a baba do caçula da família enquanto o pai dá uma olhada atenta e demorada no menu.
Todos os anos eles
celebram o Natal nesse mesmo local. Declinam os vários convites que
recebem de amigos e parentes. Gostariam até de participar, mas a tradição não
pode ser quebrada.
O pai pensa no que irá
pedir enquanto a filha mais velha ajuda a mãe com o seu irmão caçula. Na mesa
ao lado um casal conversa sobre os planos do próximo ano. Onde irão morar,
quais móveis irão comprar...
Numa mesa não muito
distante, alguns amigos estão reunidos para o tão famoso amigo secreto. Há
vários presentes na mesa. Um embrulho mais bonito que o outro. E um maior que o
outro.
Perto da porta, o dono
passa os olhos por todo o restaurante. Não consegue esconder o sorriso de
satisfação. Esse é um dos momentos mais importantes do ano. O restaurante
sempre fica cheio.
O pai finalmente
escolhe o que irão comer. Como teve um excelente aumento no ano, resolve pedir
o prato mais caro junto com a garrafa de vinho mais velha e, por conseguinte, a mais cara.
O casal ainda não
decidiu o que irão pedir. Ela não quer gastar muito, pois está pensando no jogo
de quarto. Ele, porém, quer experimentar a lagosta. O seu amigo disse que é
deliciosa.
Um dos amigos da mesa
secreta parece ter bebido um pouco a mais da conta e decide começar a cantar.
Pelo jeito outros estão bêbados também porque se juntam a ele
e, de pé, dançam e cantam entusiasticamente.
O dono pensa em
intervir, mas lembra que o pessoal da mesa está pagando um valor exorbitante e
ele não quer diminuir a alegria deles. E nem o valor final da conta.
Na cozinha o chef grita
desesperadamente com os seus ajudantes. Quer que todos os pratos saiam de forma
perfeita. Ele tem uma reputação a zelar e não quer arruína-la num dia tão
especial.
Noite especial merece
decoração especial. O restaurante está envolto em vermelho e branco. O dono
gostaria de ter usado verde e branco em alusão ao seu time de coração, mas sua
esposa o fez mudar de ideia.
O restaurante é bonito
e fica localizado numa área nobre da cidade, mas hoje está muito mais
preponderante. “Valeu a pena o gasto alto
pela decoração”, pensa o dono.
Um dos ajudantes está
em corpo presente, porém a mente está longe dali. Ele está pensando em sua
família que mora na Bahia e como ele gostaria de estar com eles agora.
Entretanto sabe que precisa do emprego.
O irmão mais caçula
começa a chorar. A mãe o pega no colo e o leva até o banheiro. O pai,
indiferente a situação, degusta do vinho mais caro do restaurante. Ele nunca
havia bebido vinho tão encorpado e saboroso.
A menina, irmã do
caçula, se levanta e vai até a mesa onde os amigos estão cantando e dançando.
Ela gosta do que vê. Um dos rapazes sorri pra ela e ela timidamente sorri de
volta. Ela então volta para sua mesa.
Não muito distante dali
um outro menino também tem uma visão geral do restaurante. Bem, na verdade é
uma visão periférica, pois do lado de fora e pela janela não dá para ver muita
coisa.
Ele não consegue deixar
de sentir um pouco de inveja do que vê. As pessoas parecem estar felizes e bem
acomodadas e melhor, estão comendo e bebendo, algo que ele não faz há dois
dias.
O menino começa a
pensar nos seus pais. Ele não sabe onde eles estão. Foram levados pela polícia,
mas ele conseguiu escapar pois estava dormindo numa caixa do outro lado do
viaduto.
Ele está com saudades
da sua mãe. Vendo aquela mulher com a criança no colo o faz lembrar de sua
infância. Ele se lembra que quando chorava sua mãe o abraçava carinhosamente e
a tristeza e dor passavam.
Perdido nos seus
pensamentos ele percebe que um homem se coloca ao seu lado. Ele não é alto nem
baixo, tem cabelos e barba longos. Apesar da aparência diferente, ele
transparece paz.
Uma das moças da mesa
do amigo secreto começa a vomitar. É sua primeira vez bebendo. Ela pensa que
pode acompanhar os amigos, beberreiros de longa data, e aprende da pior maneira
que não possível.
O dono vai ao seu
socorro. Por dentro está furioso, pois a moça sujou grande parte do chão e mesa,
porém por fora ele demonstra paciência e leva a moça até o banheiro para que
ela possa se limpar.
Apesar da situação, os
outros amigos continuam comendo, bebendo, contando piadas, bebendo, cantando,
bebendo, dançando e bebendo mais um pouco. Não é sempre que eles têm essa
oportunidade.
O menino que está do
lado de fora gostaria muito de estar do lado de dentro. Ele imagina seus pais
ali com ele. Iriam fazer a festa. Olha para o lado e pensa que o homem barbudo
poderia estar com eles também.
-
Realmente! Eu poderia estar com vocês.
O menino olha para o
lado. O homem barbudo está falando com ele. Será que ele consegue ler
pensamentos? Será que ele possui poderes mágicos? Será que ele é algum tipo de
bruxo?
- O senhor está lendo os meus
pensamentos?
- Me perdoe. Eu não consigo evitar.
- O senhor consegue ler os
pensamentos de todas as pessoas?
- Sim!!!
- Wow!!! O que estou pensando
agora?
- Que sou um lunático.
- Wow!!!
Enquanto discutem os
poderes do homem barbudo, o dono do restaurante aparece e começa a olhar para
os dois que estão parados em frente a janela. O dono então delicadamente começa
a falar.
- CAIAM FORA DAQUI SEUS
VAGABUNDOS!!!
- Mas... mas...
- NADA DE MAS. SUMAM DAQUI.
- O senhor não poderia nos dar um
pouco de comida?
- QUE MANÉ DAR COMIDA. VAI ARRANJAR
UM TRABALHO.
- Meu senhor, não há necessidade de
gritar com o garoto.
O dono do restaurante
fica imóvel. A voz daquele homem barbudo mexe com ele. Ele nunca tinha ouvido
voz tão suave e ao mesmo tempo tão poderosa. Ele imediatamente para de gritar.
-
Por favor. Retirem-se daqui. Vocês estão afugentando os clientes.
O homem barbudo coloca
a mão no ombro do dono do restaurante. O homem então começa a chorar. Ele não
sabe o porquê do choro, mas não consegue segurar as lágrimas. Parece mais um
choro de alívio.
- Ok, meu bom homem. Estamos saindo
daqui.
- Mas eu não quero ir –
protesta o menino.
- Vamos, meu jovem rapaz.
Eles então vão embora.
O dono do restaurante fica meditando sobre o que tinha acabado de acontecer. O
toque daquele homem barbudo tinha, de alguma forma, mudado o seu espírito. Ele
então volta para dentro.
Enquanto caminham pela
calçada, o menino não pôde deixar de reparar como o homem barbudo tinha mudado
o temperamento do dono do restaurante. E tudo mudou depois do toque dele.
- Wow. Aquilo foi incrível.
- O quê?
- A forma como o senhor lidou com a
situação.
- Ah, aquilo? Não foi nada.
- Aquilo foi tudo. O homem estava
nervoso e de repente ficou calmo, educado até. E tudo com um toque.
- É. O meu toque tem esse poder.
Quem se deixa tocar por ele...
- Isso tudo foi legal, mas não
mudou uma coisa.
- O que?
- Eu continuo com fome.
O homem barbudo parou e
olhou para o menino. Ele estava com um
olhar de compaixão. O menino já tinha visto aquele olhar muitas vezes na sua
mãe. Será que ele era a sua mãe?
- Não, eu não sou sua mãe.
- Wow. Você fez de novo. Leu o meu
pensamento.
- Sim, eu fiz. Agora, me acompanhe.
- Para onde estamos indo?
- Você verá.
Os dois descem a rua.
Estão andando por meia hora. A fome do menino só aumenta. Sua barriga começa a
fazer sons engraçados. O menino para de andar. O homem barbudo percebe e então pergunta:
- O que foi, Marcos? Por que parou?
- Eu parei porque estou com fome. Eu
quero... pera aí. Eu não te disse meu nome. Como sabe que me chamo Marcos?
- Eu sei muita coisa sobre você.
Você é filho de José e Maria e mora na rua com eles. Há dois dias eles foram
levados pela polícia e agora você está sozinho na rua, tentando sobreviver.
- Wow. Isso mesmo. Como o senhor sabe
de tudo isso?
- Eu apenas sei.
Depois dessa resposta
enigmática os dois continuam a descer a rua. O homem barbudo começa assobiar
enquanto o menino não vê a hora de chegar ao destino. Ele quer muito comer.
- Está com muita fome, não é mesmo?
- Demais.
- Fique tranquilo. Onde vamos há
muita comida.
- Hmmm... não vejo a hora de comer
frango, pernil, arroz de forno, salada de maionese, arroz com uva passa,
lasanha.
- Bem, onde vamos não tem isso não.
- Nãããão?!?!? O que tem, então?
- Só tem pão e peixe.
O menino fica desolado.
Sua fome é grande e ele se pergunta se alguns peixes e um pouco de pão irão
saciar sua fome. O homem barbudo, ciente dos pensamentos do menino, trata de
reconfortá-lo.
-
Fique tranquilo. Com apenas 2 pães e cinco peixes eu alimentei mais de 5,000
homens e ainda sobraram 12 cestos de comida.
Enquanto o menino tenta
entender como aquele homem barbudo alimentou tanta gente com tão pouco, uma
mulher vai ao encontro dele. Ela lhe dá um abraço reconfortante.
-
Marquinhos, meu filho.
O menino não acredita
no que vê. É sua mãe. Ela não está mais na cadeia. E junto dela está o seu pai.
Ambos com lágrimas nos olhos. Ele, como não poderia ser diferente, também
começa a chorar.
Depois de um tempo, o
menino está mais do que satisfeito. No início fica meio cético, não acreditando
que irá se deliciar apenas com pão e peixe. Percebe então que está errado. É
uma refeição maravilhosa.
Ele já tinha visto seus
pais felizes, mas nunca tão felizes. Ah, e não estão sós. Muitos moradores de
rua se juntam a eles e comem e ouvem as histórias que o homem barbudo conta.
O menino entende
algumas e desentende outras. O homem barbudo faz questão de explicar aquelas
mais complicadas. Parece que as histórias que conta se chamam parábolas.
Todos estão saciados. O
sono começa a tomar conta de alguns deles. Outros, porém, estão preparados para
mais histórias. E para mais pão e peixe. Querem comida para alimentar o corpo e
a mente.
Os pais de Marcos se
voltam para o homem barbudo. Estão sorridentes e irradiantes, pois saíram da
cadeia, onde foram presos injustamente, encontraram o seu filho e agora passam
o melhor Natal de todos.
- Moço, muito obrigado. O senhor
fez diferença em nossas vidas hoje.
- Não foi nada.
- De verdade. Muito obrigado.
A mãe de Marcos está se
despedindo. Ele também quer dizer umas últimas palavras para o homem que
encontrou na janela e que acabou de cear com sua família.
- Gostaria de agradecer.
- Agradecer pelo que?
- Por tudo! Algo me diz que, de
alguma forma, o senhor está por trás de tudo isso.
- Bem, não há de que.
- O senhor vai para onde agora?
- Para uma casa, ou apartamento, ou
na rua mesmo. Qualquer lugar onde eu seja bem-vindo.
O menino começa a
pensar nas palavras do homem barbudo e pensa no restaurante onde eles estavam.
Por que será que o homem barbudo não entrou no restaurante.
- Não entrei porque não fui
convidado.
- Wow. O senhor de novo leu o meu
pensamento.
- Sim. Não tem como evitar.
- Então responda: por que o senhor
estava do lado de fora do restaurante e não do lado de dentro?
- Veja bem. Eu posso estar em todos
os lares de todas as pessoas em todos os lugares, porém eu entro somente quando
sou convidado. Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e
abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo.
- Mas as pessoas no restaurante
estavam ceando, celebrando...
- Sim, mas não comigo e não por
mim. Elas tinham vários motivos, mas eu não era um deles.
- E porque o senhor está aqui?
O homem barbudo então
aponta para a mãe de Marcos, dona Maria. Ela está distribuindo os peixes e pães
para as pessoas que chegaram atrasadas. Ela o faz com um sorriso enorme no
rosto.
-
É por causa dela que estou aqui. Ela me convidou.
Marcos sente escorrer
lágrimas dos seus olhos avermelhados. Aos poucos ele começa a entender o que
está acontecendo. As histórias, os peixes, os pães... tudo começa a fazer
sentido.
Enquanto ele liga os
pontos, o homem barbudo se afasta deles. Ele precisa ir para outros lugares.
Ele precisa visitar outras famílias. Ele precisa cear com outras pessoas.
Sim, ele vai-se, mas
não sem antes dar um abraço em cada pessoa que está naquele lugar. Desde o mais
novo até o mais velho. Desde o mais cheiroso até o que não cheira tão bem. Ele
não faz acepção de pessoas.
Marcos se maravilha com
o que vê. E quando chega sua vez de abraçar o homem barbudo, ele sente algo
indescritível. Ele não quer solta-lo. A sensação é boa demais.
- Muito bem, meu jovem rapaz. Eu
também gosto de abraça-lo, mas preciso ir. Posso?
- Por favor, não vá. Fique mais um
pouco conosco.
- Eu realmente preciso ir, mas olha
só, haverá um momento que eu voltarei e aí não nos separaremos mais.
- Sério? Verdade isso? O senhor não
está mentindo, está?
- Eu não minto. Eu voltarei.
- Quando?
- Não sei precisar. Isso só o meu
Pai sabe, por isso aguente firme, ok? Seja forte por você, pelos seus pais...
- Vou tentar, mas as vezes é
difícil.
- Eu sei que é. Mas lembre-se:
estarei contigo.
Marcos, meio que a
contragosto, solta o homem barbudo. Por ele, ficaria por horas abraçado, mas
sabe que isso seria egoísmo da parte dele. Muitos outros precisam daquele
abraço.
O homem barbudo, depois
de se despedir de cada um, começa a se afastar. Marcos começa a chorar. Na sua
mente apenas uma pergunta: será que ele iria demorar a voltar?
Marcos então começa a
correr em direção ao homem. O homem continua andando e Marcos então começa a
gritar. O homem então para e se vira. Vê o menino correndo enlouquecidamente.
Marcos então o abraço.
- Por favor, não vá.
- Por mais que eu queira ficar, não
posso. Preciso ir.
- Tá bom!!! Ah, só mais uma coisa.
- Sim, pode falar.
- FELIZ ANIVERSÁRIO, JESUS!!!
Cada ano que passa o Natal se torna mais e mais uma data meramente comercial, onde as pessoas estão preocupadas em consumir: presentes, comidas e bebidas.
Não há nada errado em presentear quem você gosta e sejamos francos, a comida servida nessa época do ano é muito boa, apesar do nariz torto que muitas pessoas têm para o arroz com uva passa.
Comer, beber, celebrar é muito bom, mas não podemos esquecer o que ou quem estamos celebrando.
Que nesse Natal Jesus possa fazer parte da sua mesa e não apenas como mero convidado, mas sim como convidado especial.
FELIZ NATAL E
UM PRÓSPERO ANO NOVO