No
dia 28 de dezembro de 1948, na Cidade do México, nascia Édgar Vivar, mais
conhecido como Seu Barriga, um dos personagens do seriado Chaves. Quem não se
lembra dos bordões ‘Tinha que ser o Chaves mesmo’ e ‘Pague o aluguel’. Édgar
através da sua graça tocou o coração de milhares de pessoas no mundo inteiro.
Três
anos antes, mais precisamente no dia 19 de setembro de 1945, na cidade de
Bastos, São Paulo, nascia Carlos Reis, também conhecido como Seu Barriga. Ele
não foi tão famoso como seu colega mexicano, mas marcou muitas vidas, principalmente
da família Reis e de algumas outras mais que viviam e ainda vivem na Cidade
Pedro José Nunes.
Carlos
não nasceu com uma barriga protuberante e seu apelido de infância/juventude não
era Seu Barriga. Ela foi se formando com o passar dos anos. E como todo homem
que possui uma barriga saliente, ele dizia a sua era expressão de experiência.
Meu
pai sempre foi um cara cheio de vida, alegria e que gostava de conversar. Tenho
ótimas lembranças dele. Lembro de uma foto onde ele está com um uniforme do exército.
Está magro, jovem e bonitão. Não sei não, mas acredito que foi aquela foto que
fez minha mãe se apaixonar por ele. Lembro também que quando comecei a
trabalhar ele fazia questão de me acordar. Todo santo dia. E todo santo dia me
acordava meia hora mais cedo, dizendo que eu estava atrasado. Eu levantava
correndo, ia para o banheiro para tomar banho e depois, mais calmo e querendo
matá-lo, perguntava por que fazia aquilo. ‘Eu faço isso para que você não perca
a hora.’ E mesmo com todo esse cuidado
eu acabava chegando atrasado às vezes. Naquela época a população de São Paulo
já sofria com o transporte público.
Meu pai era, infelizmente, corintiano. No
entanto não era fanático. Tanto que três dos seus filhos torcem para o
Palmeiras e só um, Ronaldo também conhecido como Beiçudo, torce para o
Corinthians. Mesmo assim ele gostava muito de assistir aos jogos e nesses dias
eu via como uma partida de futebol pode mudar a natureza do ser humano durante
os noventa minutos. Meu pai era um homem sossegado e amigo de todos, mas quando
começava o jogo... Meu Deus. ‘Como você pode ser tão burro. Toca a bola oh
imbecil.’ ‘Vai tomar no... Como pode perder um gol desses?’ ‘Vai pro inferno
mesmo viu. Que time horrível esse do Corinthians.’ ‘TOCA A BOLA OH ANIMAL.’ Eu,
criança, ficava meio assustado com tanta raiva e palavrão desferidos contra a
televisão. O engraçado é que anos depois eu me pegava fazendo a mesma coisa ao
assistir aos jogos do Verdão.
Como disse meu pai era um cara legal e amigo,
porém se fizesse coisa errada... a cinta estralava. Perdi a conta de quantas
vezes meus irmãos e eu apanhamos. Kkkkk... Dou risada hoje. Kkkkk... Na verdade
estou rindo agora por lembrar de tantas surras que tomamos. Mas naquela época
não era nada engraçado. Lembro por exemplo do dia que um menino chamado...
Chamado... Como era mesmo o nome dele?!?!... Bem, não importa... Esse menino
cortou a minha pipa na mão (quem já empinou sabe do que estou falando). Fiquei
furioso e fui tomar satisfações. Conversa daqui, xingamento dali, peguei a lata
de linha dele e joguei no bueiro. O menino não hesitou: pegou minha bicicleta
que estava deitada no chão e saiu pedalando como um crazy maniac. E eu correndo atrás dele também como um crazy maniac. Foi uma cena hilária. Pois
esse menino sumiu. Quando meu pai chegou e ficou sabendo da história, me fez ir
atrás do menino, dar o dinheiro referente à linha e pegar minha querida
bicicleta de volta. Depois me deu uma surra... Meu pai geralmente segurava um
braço e o outro ficava livre. E era essa mão livre que eu usava na tentativa de
proteger minhas nádegas. Meu pai calmamente dizia: ‘Tira a mão. Tira a mão
agora. Senão vai ser pior’. Mas não tinha
como não por a mão. Era algo automático. E eu berrava por socorro. Pedia ajuda
à minha mãe e ela nem tchum. Depois dizia que me amava.
Uma
surra clássica dentre tantas aconteceu quando quebramos o vaso favorito do meu
pai. Eu, o Nem e o Naldo estávamos brincando de esconde-esconde. O Du tinha
saído de carro com meu pai e minha mãe, o que deixou a garagem livre. Estávamos nos divertindo muito até que o
Naldo ou o Nem, não sei ao certo, só sei que não fui eu (eu acho), se escondeu
atrás do vaso. Pois bem, na hora de correr para bater um, dois, três, o Nem ou
o Naldo bateu no vaso. De repente só ouvimos um pah. Quando olhamos para trás havia vaso, terra preta e plantas
espalhadas por toda a garagem. ‘Buaaaaaaaaa... O pai vai nos matar’. ‘Já sei’
eu gritei, ‘Vamos limpar tudo e depois vamos dormir que quando o pai chegar não
vai nos bater dormindo, certo?’ Limpamos a garagem rapidamente, tomamos banho e
fomos dormir. Só que antes de deitar nos precavemos. Cada um colocou três
calças e várias blusas. Me lembro como se fosse ontem. Meu pai chegou e como um
detetive veterano do programa CSI viu os vestígios de terra no chão da garagem.
Olhou para onde ficava o vaso e não viu nada além de cacos. Entrou calmamente
em casa e foi direto em quem? Em quem? No filho mais velho. ‘Edson. Edson.
Acorda filho’. Eu estava dormindo coisa nenhuma. Estava só fingindo.
‘Edsooooon. Acorda filho. O pai quer falar com você’. Eu, como grande ator de
novela mexicana demorei um pouco para abrir os olhos. Coloquei a mão no rosto
‘Hã? Pai? O que foi?’ ‘Quem quebrou o vaso? Eu não falei que era para tomar
cuidado’. O Naldo, o maior bunda mole de todos, já começou a chorar sem
apanhar. Eu, para servir de exemplo, fui o primeiro a sofrer as consequências.
‘TIRA A MÃO DA BUNDA, EDSON’. ‘NÃO VOU TIRAR’. Imaginem a cena: meu pai
tentando acertar minha bunda com a cinta, pois sabia que era ali que doía mais
e eu a defendendo. Enquanto isso, no canto da sala, o Naldo chorava sem ter
tomado nem uma cintada. Só sei que nesse dia apanhamos que nem gente grande.
Mas o legal de tudo era que depois íamos dormir e começávamos a rir, lembrando
da situação.
Uma
coisa que o Seu Barriga amava fazer era visitar nossos parentes em São José do
Rio Preto. Sempre que possível arrumava as coisas, colocava no carro e botava o
pé na estrada. Gostava de sair de São Paulo de madrugada. Assim evitava o
transito infernal da Marginal e chegava de manhã em SJRP. Ele se sentia muito
bem lá. Eu também, apesar do calor. Muito mais quente que em São Paulo. Meu pai
que não era nada bobo aproveitava então para tomar banho em alguns açudes que
havia por lá. Era muito engraçado vê-lo com aquelas pernas finas, barriga
saliente e sunga. Lembro dele ensinando o Derick a nadar.
Tudo
era bom e ainda é por aqueles lados. Mas havia algo que não era bom. Era ótimo.
Toda vez que estávamos chegando em SJRP meu pai parava numa barraca à beira da
estrada para tomarmos caldo de cana. Que delícia. O melhor caldo de cana do
Brasil. Geladinho. Na medida certa. E na volta trazíamos para casa pets do
refrigerante Cotuba. Que refrigerante gostoso. Pena que não temos esse
refrigerante aqui na capital.
Meu
pai era motorista do caminhão de gás Liquigás. Eu achava o máximo. Uma vez por
semana ele passava em casa no horário do expediente. Eu adorava entrar na
cabine e ficar mexendo no volante, fingindo que estava dirigindo. E também
subir na caçamba e ficar mexendo nos botijões. Lembro do meu pai levando dois
botijões vazios e batendo um no outro pelo meio das pernas. Aquilo me dava uma
agonia. E a musiquinha? Era impossível
não saber quando meu pai estava chegando. Essa música rapidamente virou um
clássico e é tocada até hoje. Ele era muito feliz trabalhando na Liquigás.
Naquela época ele já bebia, mas de maneira controlada. Nada demais. O problema
começou quando ele se aposentou...
Quando
ele saiu da Liquigás se viu com um tempo ocioso muito grande. Não tinha muito
que fazer. Ele acordava cedo, me acordava e ia à padaria comprar pão, leite e
sua broa de milho (por causa dele sou também viciado em broa de milho no café
da manhã). Depois do café ficava na calçada, observando o que acontecia na rua,
cumprimentando quem ali passava. Mais tarde ia para o bar do Joaquim e ali se
reunia com outros aposentados para beber uma e jogar sinuca. E assim ia até a
tardezinha da noite. Como tinha mais tempo, as viagens para SJRP ficaram mais
corriqueiras. E foi nessa vida, na verdade um pouco antes de aposentar, que sua
barriga começou a tomar forma de melancia, lhe valendo o apelido de Seu
Barriga. No começo, era algo até que normal. Não tendo mais que levantar cedo
para ir trabalhar, era normal que se ocupasse conversando com os amigos e
tomando uma. Com o tempo, a coisa deixou de ser normal. Começou a beber mais
cedo e a chegar em casa mais tarde. Eu e meus irmãos não gostávamos, mas não
ligávamos muito. Éramos adolescentes. Tínhamos nossos próprios conflitos para
resolver. Quem sofria e muito era minha mãe. Ela brigava com ele, dizendo que
ele estava exagerando.
Meu
pai era teimoso, pois ele tinha diabetes e precisava se cuidar. Não podia
deixar de tomar os remédios e com isso dar brecha para a doença. E por conta
disso precisava maneirar na bebida. Minha mãe sabia que do jeito que as coisas
estavam se encaminhando ele iria parar no hospital. Dito e feito. Teve um
derrame e perdeu a mobilidade do lado esquerdo do corpo. E por causa da mistura
de remédios e álcool acabou tendo seu corpo debilitado, fraco, o que fez que
ficasse numa cadeira de rodas. E como a diabetes judiou dele. Ele tinha umas
feridas nas pernas que não saravam por causa dela. O médico percebeu que a
perna já estava ficando preta e teve que amputá-la antes que outros órgãos
fossem comprometidos. Foi um momento difícil para todos nós. Minha mãe não
tinha mais vida, pois a vida dela agora era cuidar do meu pai. Sua vida era do
hospital para casa. De casa para o hospital. Lembro de vários parentes vindo de
todos os lugares do Brasil para visitar o Seu Barriga. Ele era muito querido.
Eu sei. A história ficou meio triste agora.
Porém foi nesse momento complicado que algo inusitado aconteceu. Estávamos
sentados à mesa, comendo o pão de broa que ele tanto gostava quando tive a
ideia de contar uma das minhas piadas hilárias. Não me pergunte qual porque
sinceramente não me lembro. Nesse dia meu pai não estava falando direito por
causa do derrame, era difícil entender o que ele dizia. Só sei que quando
acabei de contar a piada, ele ria. E ria. Ria demais. E nós todos riamos
também. Não por causa da piada, mas da forma gostosa e espontânea que ele ria.
Isso me marcou. É uma imagem que ficará para sempre na minha mente. Lembro dele
batendo palmas, rindo e dizendo ‘Boa, Esso’.
E
é com essa imagem que quero encerrar esse texto. Uma imagem do meu pai
sorrindo, feliz da vida. Porque ele era assim. E que o Papai do Céu o tenha em
bom lugar. Quem sabe ele não esteja ao lado da minha mãe e juntos estejam dando
boas risadas.
Te
amo pai !!!
Carlos
Reis
19/09/1945
– 14/07/2006